UNIVERSO TÉLMICO. 53
Saudável indignação
(para que o sagrado, o silêncio e o amor permaneçam no coração)
Risoleta C. Pinto Pedro
Se com alguma facilidade olho como ridículas, acções de que eventualmente eu possa ser o alvo, mais difícil me é o estado de ataraxia se se trata de um amigo. Mais ainda se se trata de um amigo com a qualidade ética, humana, pedagógica, criativa e intelectual de António Cândido Franco. Pensei bastante sobre isto nesta Páscoa e percebi porquê: é que se posso examinar o meu estado interior e tranquilizar-me a mim mesma em relação a mim própria, mas difícil me é saber em que estado se encontra o amigo, ainda que diga e manifeste que está bem. Se o meu coração ficar em paz com a confissão, também eu mudo de agulha e esqueço o facto, mas se não for o caso, algo se impõe, algo tem de ser feito. Frequentemente confundimos paz com o silêncio que se faz quando metemos a cabeça na areia. Na verdade, dentro do coração o som de metais a embaterem uns nos outros é ensurdecedor. Por outro lado, é possível denunciar uma ignomínia no meio de uma amável brisa interior, fresca, sorridente e pacífica. Nem sempre a imobilidade ou a aparente paz exterior tem correspondência no interior e vice-versa. Assim, deixei-me recentemente de preconceitos em relação a conflitos, polémicas e tempestades cerebrais e atirei-me de cabeça, com o coração em paz, na defesa de um amigo. Não estive sozinha, mas poderia ter estado, contudo outra voz se fez ouvir, seguiu-se um manifesto conjunto que vem sendo subscrito por muitos outros e outras vozes individuais e colectivas se têm vindo a fazer ouvir, como uma maré tranquila, mas determinada. Nunca temos a razão toda, mas tenho de reconhecer que em determinados momentos temos 99,9%. Deixo um por cento de fora para o elemento mistério que sempre nos ultrapassa.
Que fazer, quando um amigo que se aproxima espantosamente do mais elevado ideal de ética que podemos conceber e ainda por cima é talentoso e competente, que fazer quando a sua obra, que nós até conhecemos, porque a lemos e estudámos, é pública e repetidamente arrasada da forma mais inqualificável por quem não percebe nada do assunto? Poderíamos ter ficado calados? Sim, mas não era a mesma coisa. Os 25 de Abril fazem-se por alguma razão. Se assim não fosse, tínhamos ficado todos quietos perante as injustiças de um regime. Os “pequeninos” regimes injustos dentro dos grandes regimes não terminam com as revoluções. É preciso prosseguir as campanhas educativas, chamar os bois pelos nomes, salvo seja, e dizer que o rei vai nu.
É claro que apreciando e adoptando o nobre princípio paz aos homens, guerra às ideias, é preciso não esquecer que as ideias são veiculadas pelos homens e algumas são mentirosas, cruéis e indignas. Ficar em silêncio é concordar tacitamente.
Veio-me parar às mãos, recentemente, uma carta de Antero e, como sempre que o leio, fiquei cheia de saudável inveja. Se eu tivesse o talento dele, e estou a pensar na carta que escreveu ao Ministro que mandou encerrar a sala das Conferências Democráticas tal como alguns, se pudessem, mandariam retirar das prateleiras das livrarias a magnífica biografia que António Cândido Franco fez de Agostinho, e sabe-se lá com que inquietante nostalgia de antigas fogueiras, não o podendo fazer, limitando-se a desrecomendar e anatematizar a sua leitura, se eu tivesse o talento de Antero, repito, teria escrito algo assim ou parecido:
«Vou ser descaridoso com V.Exª, porque V.Exª deixou de merecer a minha caridade.
Dirigindo-me a V.Exª, dirijo-me sobretudo ao público: por isso escrevo pela imprensa. Particularmente não lhe escreveria, porque me prezo de não ter correspondentes senão pessoas inteligentes, pouco condecoradas, e de provada ortodoxia em gramática portuguesa. V.Exª não está neste caso. Além disso, a questão não é pessoal.
Para mim o marquês d`Ávila é apenas mais um titular: isto é, uma coisa hirta que passa, e que dois merceeiros mostram um ao outro. Já vê V. Exª que era impossível incomodar-me, e menos ainda ofender-me.
A questão é com um ministro, cujo nome me é indiferente, é com a opinião pública, que tem de julgar os actos desse ministro.»
Não o sabendo fazer com este talento, fi-lo do modo como sei:
https://aluzdascasas.blogspot.pt/2017/04/a-proposito-de-um-artigo-no-observador.html
Depois participei e subscrevi um manifesto a que se têm juntado almas honestas, indignadas e perplexas. Era sexta-feira santa, uma verdadeira Quaresma:
https://www.antonio-telmo-vida-e-obra.pt/news/manifesto-de-desagravo-a-antonio-candido-franco/
Quaresma que, alquimicamente, à medida que as assinaturas se foram juntando, se foi transformando em Páscoa.
Estamos quase no 25 de Abril. Não acredito que consigamos, com a mesma facilidade, libertar a obra de Agostinho da Silva das amarras em que a mantêm presa, mas os corações estão mais leves por António Cândido Franco.
Uma coisa de cada vez.
Por uma questão de higiene intelectual, não divulgarei, neste texto, o artigo da perfídia que deu origem a isto tudo, quem quiser conhecê-lo facilmente o encontrará na Internet, mas permitam-me que me faça acompanhar, mais uma vez, por um mestre. Assim poderia ter iniciado o meu desabafo, só não o fiz porque não me chamo Antero de Quental:
«Exmº Sr: Pego na pena, mais pesaroso do que irritado. As misérias morais de qualquer homem contristam-me, porque vejo nelas o abaixamento da alma humana, que devia pairar serena e sem mácula. As misérias morais dos homens, que pela posição, pela autoridade, pelos anos, têm missão de dar exemplo da justiça incorruptível, e ser como apóstolos entre nações, essas compungem-me dobradamente, porque vejo nelas a degradação duma coisa augusta, a lei»
E não resisto a continuar:
«V.Exª não só julgou sem processo, como também condenou: porque impedir-nos de falar é já uma condenação. E é uma condenação maior ainda atrair sobre as nossas cabeças, apontando-nos à indignação do país, como inimigos da ordem e das crenças públicas, a reprovação universal. Fazer isso, contra homens indefesos, com todo o peso da autoridade, do lugar, da reputação, é além de tudo cobarde.»
Assim, é com este sabor a Antero que prossigo:
«Ah, sr. marquês! Em presença de certos factos (e este é um deles) sinto uma melancolia profunda invadir-me, envolver-me a alma! É assim que, no momento mais solene do século XIX, e num dos momentos mais críticos da nossa história, com os perigos visíveis e invisíveis que correm sobre nós de todos os lados do horizonte, é assim que homens escarnecidos na arte, tão cheia de lições e experiência, de governar os outros homens, dão ao mundo o espetáculo de incapacidade, da intolerância, e da mais assustadora ignorância das verdadeiras questões do nosso tempo?!
São estas as lições com que educam o sentimento público, a opinião? É assim que preparam o futuro? Aonde vamos nós por este caminho? Ao absolutismo? Não, que não tem força para tanto. Vamos à mais repugnante das dissoluções sociais, à dissolução dos princípios, a gangrena dos espíritos, a morte moral!
O assunto é sério e triste. Já não me posso rir, e a indignação cedeu inteiramente à melancolia que inspira o destino provável de uma nação, que os seus salvadores se esforçam cada vez mais por condenar irremissivelmente! Já não me posso rir, sr. Marquês, apesar de continuar a vê-lo: é que por detrás de V.Exª, em redor de V.Exª, dentro de V.Exª, vejo eu uma coisa bem pouco para riso: um mundo que apodrece!»
Ao fim de uma eternidade a fingir-se de morta (o que não lhe será difícil…), a dita Associação que usa o nome de Agostinho vem, timidamente, aflorar um desesclarecimento. Que apenas convence quem se deixaria convencer até com um texto escrito numa língua que não existisse como a língua dos “pp” que usávamos em crianças, ou é intelectualmente tão míope que não vê mais do que um centímetro à frente do nariz. Demasiado tempo, para tão tardio, dúbio e débil auto-desculpar.
Como muito bem diz Antero, esse cuja estátua, como acabei de saber por uma amiga, tal como a obra de Agostinho, tem sido maltratada e mutilada, «a questão não é pessoal». Mas é ética, pública e nacional.
Apetece citar Sebastião da Gama, não poupando os críticos: «Deixem-me sossegado a fazer versos/ […] uma coisa melhor que todas as suas pretensões/todas as suas ciências, todas as suas opiniões,/ e que mais belos do que eles só uma flor encarnada a nascer em cima de um telhado/ sem se importar de saber se olham para ela ou não…».
Sebastião da Gama, de quem afirma o seu amigo David Mourão-Ferreira:
««… não se julgue que havia, no comportamento de Sebastião da Gama, o quer que fosse de rígido ou empertigado: nem ascética austeridade nem teológica sobranceria. Em tudo, pelo contrário, manifestava ele uma bonomia contagiante que mais dava a impressão, a quem o visse pela primeira vez, de um Santo António de nicho popular. E a imagem não era de todo inexacta, porque existia, na sua alma, um fundo do mais puro franciscanismo. Quem, no entanto, a essa imagem o reduzisse ficaria privado de conhecer os tesouros de sensibilidade estética, de argúcia crítica, de inteligência e de bom gosto e que o seu espírito guardava, em secreta e inconsciente rivalidade com os tesouros que a alma não conseguia esconder.»
Dele dizia Hernâni Cidade: «É que naquela alma, perfeita em sua inteireza e unidade, não havia deveres profissionais ou virtudes de circunstância: tudo era vivido em profundidade ou altura em que excluem qualquer forma de superficialidade».
Faço minhas, em relação a António Cândido Franco, as palavras de Hernâni Cidade e David Mourão-Ferreira. Que incomensurável diferença face aos seus caluniadores!
Face a esta verdade que é o seu Ser, não há esclarecimentos que resistam.