UNIVERSO TÉLMICO. 47
Publicamos hoje a comunicação que Miguel Real apresentou ao COLÓQUIO A LITERATURA DE AGOSTINHO DA SILVA, que o Gabinete de Estudos Agostinho da Silva organizou e concretizou no passado dia 15 de Outubro, no Auditório do Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz. Este texto acaba também de sair a lume no número 9 da GEORGE, página mensal do GEAS no jornal Raio de Luz. Todas as comunicações serão reunidos no livro em que virão a lume, no decurso de 2017, as Actas do Colóquio.
As novelas sul-americanas de Agostinho da Silva
Miguel Real
1. – Agostinho da Silva escritor?
Numa primeira leitura, as novelas de Agostinho da Silva constituem-se como reflexão existencial pela qual o autor, através da alteridade de uma instância narrativa designada por “Mateus-Maria Guadalupe”, vai plasmando memórias, impressões de viagens, tipos sociais e meditações filosóficas e estéticas, numa peregrinação sem fim nem objectivo entre a Europa, a África e a América do Sul.
Escrita ao longo da década de 50, a novelística de Agostinho da Silva divide-se em três blocos narrativos, datados de 1953 – Herta, Teresinha, Joan -, 1955 – “Macaco-Prego” -, e 1957 – Dona Rolinha, Ada Carlos, Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias -, ainda que estes dois últimos, publicados em 1989, na editora Cotovia, de Lisboa, não possuam data especificada de escrita.
Com excepção das duas últimas novelas, Agostinho da Silva designa o conjunto dos restantes textos literários por “memórias” e por “lembranças”, inscrevendo-os deste modo na literatura memorialista de viagem. Porém, pelo seu conteúdo diegético, Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias podem igualmente inscrever-se neste género literário.
Fundindo escrita e vida, o cunho memorialista que Agostinho da Silva imprime aos seus textos literários denota mais uma preocupação de auto-reflexão do autor sobre a vida própria – uma espécie de escritor-testemunho - e menos uma pretensão de fazer literatura. Ele próprio o confessa, declarando, na apresentação dos primeiros três textos, de 1953, não atribuir importância a questões de estilo[1], isto é, justamente ao elemento categorial que define a singularidade de um escritor, integrando-o no panorama geral da literatura de uma época. Dois anos depois, na apresentação da novela “Macaco-Prego”, Agostinho da Silva enfatiza de novo o pouco valor que atribui ao trabalho estético-literário sobre a linguagem, escrevendo: “[as] minhas memórias, que eu vou escrevendo tão preguiçosamente e tão desordenadamente, (...) [escritas no] bom remanso e bom repouso para uma existência que, sem acidentes, apesar disso, ou talvez por isso, tanta vez se cansa de si própria. Revejo-o [ao texto da novela], mas não o corrijo. Porque muito me agrada restituir à vida, sem esforço, o que a vida, a mim, sem esforço me trouxe”[2].
Assim, numa primeira leitura, a posição de Agostinho da Silva face à literatura aparenta não ser a de um escritor. Em 1957, na apresentação de Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria Guadalupe, Agostinho da Silva insiste nesta sua posição exterior à Literatura enquanto arte: “De modo que, se a crítica me permite, eu continuarei supondo-me do lado de fora da literatura, que é assunto sério e difícil de mais para mim; sentir-me-ei assim muito mais à vontade”[3].
Agostinho da Silva parece ostentar a sensibilidade estética prenunciada de quem, em horas de “repouso”, nas férias, decide passar para o papel as suas impressões de viagem, tomando como um dos temas centrais a sua relação com diversas mulheres. Com efeito, o autor parece nunca ter levado a literatura a sério, não ter querido ser escritor ou fazer da literatura o elemento sagrado da sua existência. Por isso, no seu primeiro núcleo de novelas, explora o tema da relação de impossibilidade do amor entre homem-mulher, enquadrando-o em contínuas viagens, estabelecendo-lhe uma forma literária (o memorialismo), mas, como confessa, não intenta desenvolver um estilo singular, escrevendo apenas de um modo gramaticalmente correcto.
Assim, se nas primeiras novelas – 1953 - a exploração de um tema e o enquadramento literário já existem, como prenúncio de um possível escritor, falta ainda, porém, o elemento estético vital que diferenciaria Agostinho da Silva dos restantes escritores – o estilo. Evidencia-se assim, em 1953, que se repetirá em 1955, a existência de um quadro contraditório em Agostinho da Silva principiante de escritor: 1.– possui um tema, que explora abundantemente (a impossibilidade da realização de um amor absoluto entre homem e mulher); 2. – possui uma forma literária enquadradora da exploração do tema: o memorialismo; 3. – falta, porém, o selo sagrado da individualidade estética de um escritor – o estilo próprio pelo qual uma história nunca fora contada dessa excepcional maneira.
Pelas citações que referenciámos, constatamos que Agostinho da Silva tem consciência de que não é verdadeiramente um escritor e de que se encontra do “lado de fora da literatura”. Na mesma apresentação de 1955, recolhendo informações de críticos literários portugueses, que não nomeia, indica três factores por que os seus textos não seriam propriamente literários: - a coloquialidade brasileira; a ausência de carácter das personagens e a ausência de trama narrativa[4]. Torna-se hoje evidente que nenhum destes factores, prendendo-se exclusivamente com análises parcelares e modísticas da parte dos críticos, então, meados da década de 50, profundamente divididos em correntes literárias, projecta Agostinho da Silva para “fora da literatura”. A verdadeira razão – parece-nos -, encontramo-la num desabafo do autor quando confessa “não ser muito versado no estudo dos clássicos, muito dos quais, para falar verdade, não tornei a ver desde os meus tempos de liceu”[5]. Ou seja, para Agostinho da Silva da década de 50, a literatura evidencia-se como uma actividade de tempos de vilegiatura, um fazer as contas ficcionais dos passos dados na vida, com evidente prazer estético, claro, mas não prazer sagrado. Numa palavra, sem estudo e sem prática estética, a literatura parece ser encarada por Agostinho da Silva de um modo diletante, literatamente, isto é, sem nunca encará-la como um absoluto em que se joga a vida. O literato é o escritor que escreve bem, maneja habilidosamente a gramática, limitando-se a uma descrição das impressões filosóficas e ideológicas da vida. Assim, o literato não escreve literatura, mas impressões de vida, espécie de testemunho escrito da sua existência, ficcionando esta segundo preocupações específicas, que habitualmente constituem o tema e o enquadramento dos seus textos.
Em conclusão, os textos literários escritos entre 1953 e 1955, indicam-nos que Agostinho da Silva não é um escritor, mas - porque já possui um tema próprio e uma forma estética privilegiada - um principiante ou candidato a escritor, ostentando, nas introduções às suas novelas, uma posição diletante ou literata da literatura.
Permitam-nos, porém, tentar esclarecer a afirmação de Agostinho da Silva segundo a qual ele e os seus textos se encontrariam “fora da literatura”. Será argumentativamente suficiente esta declaração pessoal? Não pertencerá a uma estratégia retórica do autor de modo a acentuar a radical novidade dos seus textos? Recordemos que, vinte anos antes, tanto Jorge Amado, no Brasil, na epígrafe a Cacau, como Alves Redol, em Portugal, na epígrafe a Gaibéus, tinham ostentado idêntico desprezo pela literatura como arte com o evidente intuito, porém, de criticarem as antigas criações romanescas e de lançarem uma nova corrente estética; menos de dez anos antes, os jovens surrealistas portugueses, como José-Augusto França, Mário Cesariny, António Maria Lisboa, manifestavam nos cafés de Lisboa um profundo desprezo pelo modo harmonioso de compor versos ou textos narrativos; que, sete anos depois, em 1962, o juvenilíssimo Almeida Faria, em Rumor Branco, manifestará idêntico desprezo, dispensando-se do uso da sinalética fonética no seu romance. Poderemos inserir Agostinho da Silva nestas correntes e gestos literários de profundo simbolismo contestatário? Cremos que não, só se critica o que se conhece e, em termos literários, é o desconhecimento, o não convívio com a recente literatura portuguesa e brasileira, que leva Agostinho da Silva a confessar com sinceridade estar “fora da literatura”. Se o autor se confessa “fora da literatura” é porque tem consciência que não está “dentro” dela, ou seja, que é alheio a tudo o que é vital a um tempo literário, definindo-o. E Agostinho da Silva prova, pelos seus próprios textos, que se encontra alheio ao então sangue quente da literatura brasileira e portuguesa. Mateus-Maria Guadalupe convive com uma inúmera diversidade étnica de povos do interior do Brasil e não faz nenhuma referência ao modernismo brasileiro e a Macanuíma, de Mário de Andrade; Mateus-Maria Guadalupe atravessa o Recife, descreve a personagem Ada Carlo a ser presa na delegacia da polícia de um bairro que, pela descrição do mercado e dos joalheiros, não pode ser outro senão o Bairro de S. José, e nem uma referência a um espírito errante tão semelhante ao seu como o de Manuel Bandeira. Mateus-Maria trabalha em Minas Gerais mas parece desconhecer totalmente a existência de Carlos Drummond de Andrade ou de Guimarães Rosa. Mateus-Maria Guadalupe viaja pelo Sul, Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Santa Catarina, mas nenhuma referência, por mínima que seja, que nos faça lembrar o lirismo de Erico Veríssimo. Mateus-Maria privilegia a Bahia e o Recôncavo, mas parece desconhecer totalmente a épica mulata e operária que Jorge Amado acabara de escrever; descreve o sertão, partes da Bahia, da Paraíba, do Pernambuco, do Ceará, mas nenhuma menção a Graciliano Ramos e muito menos ao clássico José de Alencar. Mais: Mateus-Maria explora o rio Madeira, quem sabe se não terá descansado nas ruínas do “seringal Paraíso”, cruza o Amazonas e desembarca em Belém do Pará e nem um mínimo de referência à personagem Alberto de A Selva, de Ferreira de Castro. É como se Mateus-Maria Guadalupe fosse uma mónada literária, reflectisse todo o mundo segundo o seu lugar no universo e a ordem do universo de Mateus-Maria a tudo respeitasse menos o da literatura brasileira.
Assim, tanto por razões intrínsecas (as palavras confessionais do autor) quanto por razões extrínsecas (a historiografia das literaturas portuguesa e brasileira), parece-nos ser verdadeira, e não uma mera estratégia retórica, a declaração de Agostinho da Silva de que a sua actividade literária se encontra “fora da literatura”. Neste aspecto, e por todas estas razões, em termos de crítica e de historiografia literárias não se pode deixar de confessar ser a obra ficcional de Agostinho da Silva mais de um literato do que de um verdadeiro escritor, de um pensador do que de um escritor.
[1] Cf. Agostinho da Silva, “Nota Prévia” a Herta. Teresinha. Joan. Três Novelas ou Memórias de Mateus-Maria Guadalupe, [1953], in “Obras de Agostinho da Silva”, Estudos e Obras Literárias, Lisboa, Âncora Editora, 2002, p. 73.
[2] Cf. Agostinho da Silva, “Macaco-Prego”. Lembrança Sul-Americana de Mateus-Maria Guadalupe, ed. cit., p. 155.
[3] Cf. Agostinho da Silva, Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria Guadalupe Seguidas de Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias, ed. cit., p. 183.
[4] Idem, ibidem, pp. 183 – 184.
[5] Idem, ibidem, p. 183.