UNIVERSO TÉLMICO. 44

23-10-2016 14:45

As últimas cartas de Agostinho

Luís Carlos dos Santos

Agradecer, antes de mais, o convite que me feito pelo amigo Pedro Martins, e também a organização do Congresso ao:

Gabinete de Estudos Agostinho da Silva

Projeto António Telmo. Vida e Obra.

Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz

 

“As Últimas Cartas do Agostinho…”

 

O título desta comunicação “As Últimas Cartas do Agostinho…” refere-se a um livrinho por mim organizado e editado no Círculo de Animação Cultural de Alhos Vedros, em outubro de 1995, do qual foram feitos 50 exemplares, e que se constitui por um conjunto de 12 cartas enviadas por mão de Agostinho da Silva a um grupo de amigos com quem estava em contacto mais próximo, ou que se candidataram a destinatários de tão digníssima epístola.

O repto é endereçado pelo Professor em Carta subscrita na Lua Cheia de janeiro, 8/1/1993, onde diz: “Queridos Amigos, O imaginário Convento Sonho duns Irmãos Servidores me encarrega de vos comunicar que acaba de tomar posse de tudo quanto há  e me designa como seu agente junto de vós para tudo que se refira a estas folhinhas dactilografadas, que serão sempre mensagem do Convento, assinadas ou não (…) São enviadas a tôdas as pessoas que já declararam por palavras ou feitos que desejam recebê-las ou o declarem daqui por diante.”

A primeira carta do conjunto que constitui a brochura, foi enviada no mês de dezembro de 1992 e a última em Setembro de 1993, o que significa dizer que este conjunto de cartas foi expedido, praticamente, ao logo do último ano de vida do Professor, pois que em meados de outubro, mês seguinte ao da última destas cartas, a súbita degradação física que o acometeu haveria de o guindar ao seu falecimento que, como sabemos, ocorreu no dia 3 de Abril de 1994, um triste mas revelador Domingo de Páscoa, dia de ressurreição.  

Fulcral é a primeira destas 12 cartas e, logo aí, se diz claramente ao que se vem. Fixemo-nos nas palavras de Agostinho:

“Resumo da ideologia do Povo Português nos séculos XIII e XIV, transmitida ao Brasil por seus adeptos que ali se foram acolher, passada ao futuro e, por ele, à criativa Eternidade para os que emigrem para o mais íntimo de si próprios e aí se firmem para sempre.

Missão de Portugal: Sacralizar o Universo, tornando Divina a Vida e Deus real.

Meios: Desenvolvimento dos Povos pela inteira aplicação da Ciência e da Técnica, inclusive nos sectores da Economia, da Política, da Administração Pública e da Filosofia. Conversão da pessoa à adoração da Vida.

Características do que houver no Sagrado: Criança como a melhor manifestação da poesia pura e como inspiradora e suporte, e incitadora a ser criança de todos os que existam. O gratuito da vida. A plena liberdade de todo o ser.”

Eis uma síntese perfeita do período da história portuguesa que Agostinha da Silva mais admira, e a que no dizer das suas ideias sempre regressa, resumo da ideologia que, então, orientava o país, com epicentro no reinado de D. Dinis (“o plantador das naus a haver”, no dizer de Fernando Pessoa). Agostinho complementaria assim: “Acho a época de D. Dinis perfeita (…) A Rainha Santa e o rei-poeta. Calcule, o casamento de um poeta e de uma santa, que coisa extraordinária! D. Dinis com os Estudos Gerais. Depois é que transformaram aquilo em universidade, que veio a dar no que deu. Estudos Gerais, estudo geral para toda a gente e geral para todos os estudos, que outra coisa quereríamos para Portugal senão isso? Toda a educação portuguesa devia ser essa. Voltar aos Estudos Gerais e ao D. Dinis.” 

Então, seguindo o nosso autor, haverá que disciplinar o processo de produção e de distribuição dos bens, de forma a chegar-se a uma economia comunitária que se inspire naquela que existiu, para construir uma economia mais humana, pois é esse o exemplo que nos dá a organização económica medieval em Portugal. O que a Europa trouxe para Portugal foi uma economia capitalista, uma economia de luta. Ora, muito melhor é uma economia de convivência e de cooperação comunitária, de autonomia municipalista, com uma distribuição mais equilibrada das riquezas, como era a que caracterizava a economia portuguesa da Idade Média, antes desta importação europeia. Tipo de economia que foi liquidada por essa outra importada.

Discorrendo sobre a organização política que se deveria seguir, em carta de Lua Nova de 22 de Janeiro, 1993, sustenta-se que deve esse tal “imaginário Convento Sonho duns Irmãos Servidores”, deveria assumir dois compromissos: primeiro, o de que Portugal, inspirando-se nesses princípios da ideologia medieval portuguesa, se deveria comprometer na educação da Europa Transpirenaica; segundo, de que viesse  a constituir-se uma Confederação, ou coisa parecida, de todas as Nações de Língua Portuguesa, sendo um dia Portugal seu representante na Europa Comunitária e, citando,  “…que fique nítido que o ideal de futuro é o da cultura do Povo Português nos séculos XIII e XIV.”

Neste sentido, relembre-se, a importância que tem, para si, o culto popular do Espírito Santo que ganha uma dimensão fundamental em Portugal neste período, com o ativismo espiritual da Rainha Isabel de Aragão. Culto Popular do Espírito Santo, ou Culto do Divino, que chega a Agostinho da Silva pela influência direta de Jaime Cortesão, e também de António Quadros, embora na forma de um reencontro, pois que, como nos diz, não exclui a hipótese de que ele próprio tenha “andado no tal século XIII envolto com os outros na Festa do dia de Pentecostes em que sonhava o povo português sentir-se já num Paraíso a vir…”.

Eis os três pontos essenciais da festa do Espírito Santo:

1. A coroação de um menino como imperador do mundo. A representação na Terra do Espírito Santo é a imaginação da criança. Ou, como diz Agostinho, também pode ser, inspirando-nos no presépio de Francisco de Assis, o menino representando o renascimento de Cristo: “é como se fosse Cristo renascendo.”

2. Através da imaginação da criança se chegará à libertação dos presos e ao fim de todas as prisões, internas e externas. Ou seja, à consagração do grande ideal de liberdade e de libertação espiritual que Agostinho sempre releva.

3. O banquete gratuito, como representação simbólica de uma livre repartição de recursos alimentares entre todos, de modo a que ninguém falte que comer.

No dizer do Professor, “É como se os portugueses tivessem dentro deles sem se expressar, inconscientemente, já essa ideia fundamental de ter que se caminhar para o futuro, mas para um futuro que era ao mesmo tempo do passado, porque, se o espírito santo que viria a reinar numa terceira Idade era coetânea do Pai e do Filho, logo pertencia a um passado de toda a Eternidade. (…) ou seja, uma festa em que os portugueses declaram como vai ser o tal mundo do Espírito Santo.”

E seguindo a carta de Lua Cheia de 8 de Março de 1993, “Pôsto isto assim, e acreditando num universo sacralizável ou de que se descobriria o Sagrado, na possibilidade de uma vida gratuita, numa defesa e desenvolvimento contínuos do Poeta que nasce em cada Criança e numa desejável inteira liberdade de cada ser, o melhor é não o andarmos pregando, mas o pormos em prática.”

Continuando em carta no Crescente de Abril “como os da Festa foram todos expulsos, para a Guiné ou para o Brasil, aí pelos séculos XV e XVI, pensámos que já era tempo de regresso (…) Nada será de uma dia para o outro, mas iremos à nossa tarefa com toda a calma, experimentando, poucos como somos, tornarmo-nos um tanto contagiosos e reaver o tesouro que se perdeu, mas de que ainda há lembrança nos Açores e muita prática no Brasil (…) Porque afinal tudo isto é só uma tentativa de alicerce de império: Império de Servir.”

E por se falar em “Império de Servir”, sobre as ideias quinto-imperiais, relembremos que Agostinho da Silva vê uma perfeita linha de continuidade entre a cultura medieval portuguesa, Camões, Vieira e Pessoa, seja no “culto do espírito santo”, na “ilha dos amores” ou “5º império”, embora pesem os diferentes tempos em que existiram e a inevitabilidade de se relacionarem com as ideias de seu respetivo tempo. Afinal, em suma, dizer que Camões, Vieira e Pessoa são heterónimos do desejo de que haja no Mundo alguma coisa que seja a realização plena do homem.

Assim, o Império enaltecido na “Ilha dos Amores” dos Lusíadas, preconizado por Vieira e por Pessoa, será um império verdadeiramente “católico”, quer dizer, de acordo com a etimologia da palavra, universal, e caracteriza-se pelo advento da Idade do Espírito Santo, o consolador da esperança humana, tal como profetizara o evangelista S. João e idealizou o abade italiano Joaquim di Fiore.

Este Deus consolador que se refere é aquele que Cristo revela, a quem Agostinho reza na igreja, mas que não é o Deus das igrejas, antes o Deus que as une a todas e paira acima de todas. É um Deus que podemos chegar se atingida a verdade. Um Deus íntegro, total, paradoxal, tudo e nada, imanência e transcendência, que junta tempo e eternidade, sem separação de bem e de mal, de homens e animais, de tudo o que existe. Um Deus que é, antes de mais, inefável, e é silêncio, onde ciência e filosofia, “saudades disfarçadas em raciocínio”, devem ajudar a atingir, mas não podem definir.

Às influências de Jaime Cortesão e de António Quadros, sobretudo do primeiro, seu sogro, com quem conviveu e trabalhou no Brasil, deve juntar-se a ideia de “luso-tropicalismo” do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre que nesse país fez escola, base da ideia que expressa na carta de Lua Nova (face virada ao sol), Abril de 93, sobre “o empreendimento em que pensa o Brasil duma Comunidade de Povos de Língua Portuguesa, e seus crioulos, filhos, por seu turno, do crioulo que o Português foi do latim, tudo afinal neto do mais vasto Indo-Europeu.” O Brasil torna-se em Agostinho, o contemporâneo parceiro ecuménico por excelência daquele Portugal medieval que proclamava o reino do Paráclito, pois que à comunidade luso-brasileira deverá caber a missão de condução desse projeto ecuménico ao mundo. Como sabemos, Agostinho da Silva é um dos percursores da conceção de um Projeto Lusófono que junte países e comunidades, ideia que acabou por se materializar em 1996, com a criação da “CPLP” (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).

E continuando ainda com o que nesta carta se diz: “O que vai haver, sem velas, excepto as desportivas, mas por aeroportos e por Faxes, é a integração dum pensamento como o de Lao-tsu, se dele é, (…) que os há em todas as religiões e filosofias (…) reinado da criança e sacralização dos animais e de tudo o resto. O que temos de ter connosco é um sentido de ordem não opressiva que impeça o caos e ondas de imaginação a saudar o que ainda não veio, com uma China cada vez mais para o concreto, um Brasil todo virado ao sonho, e, no meio, uma África que nos ensine a todos, já que índio enfraqueceu por tanto século de luta.” E aqui, como se refere Lao-tsu também se poderia referir as ideias de Buda, particularmente, do budismo zen, espiritualidade que Agostinho também enalteceu. Como sabemos o próprio Agostinho visitou o Japão em 1963 e aí conviveu entre faculdades, templos e monges budistas, e disso nos deixou testemunho.

E para terminar, na última carta “de Setembro de Lua Cheia e de 93”, e sendo que o forte “avc” de 17 de Outubro já se avizinhava, Agostinho deixa-nos três princípios pessoais orientadores de vida: “o de se ver livre do supérfluo, o de não confundir o verbo amar com o verbo ter, o de prestar voto de obediência ao que for servir, não mandar (…) Para tudo o que fordes e fizeres rogarei perfeito empenho e boa sorte, bom vento de navegar.”

 

Obrigado.

 

Luís Santos

12 de Outubro/2016

Referências Bibliográficas:

 

SANTOS, Luís Carlos dos (org.) (1995) As Últimas Cartas do Agostinho… Edição do Círculo de Animação Cultural de Alhos Vedros.

 

Idem (2016) Agostinho da Silva: Filosofia e Espiritualidade, Educação e Pedagogia (td). Vila Nova de Gaia: Euedito.