UNIVERSO TÉLMICO. 32

15-02-2016 10:06

De Paulo Samuel, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra, publicamos hoje o texto integral da apresentação do livro António Quadros e António Telmo - Epistolário e Estudos Complementares, lido na sessão que teve lugar no passado dia 29 de Janeiro, no Porto. Co-editado pela Labirinto de Letras e pela Fundação António Quadros com o apoio institucional e científico do nosso Projecto, esta obra foi coordenada por Mafalda Ferro, Pedro Martins e Rui Lopo, que, com João Ferreira, anotaram também o epistolário. O prefácio é de António Carlos Carvalho e o posfácio de João Ferreira.

António Quadros e António Telmo
Paulo Samuel

 

O livro António Quadros e António Telmo - Epistolário e Estudos complementares apresenta-se como um livro fora do comum. Do ponto de vista editorial e gráfico não evidencia essa singularidade, que só o acto de folhear o volume permitirá apreender. A subsequente leitura, confirmará essa distinção.

Coordenado por Mafalda Ferro (da Fundação António Quadros), por Pedro Martins (do Projecto António Telmo - vida e obra) em colaboração com Rui Lopo, este livro surge a público pelo Labirinto de Letras Editores (isto é, pelo acolhimento que lhe deu o Dr. José António Barreiros), em parceria com a Fundação António Quadros. A fotografia da capa é de Carlos Aurélio e a concepção gráfica de Ricardo Campos. Na contracapa, inscrevem-se duas passagens epistolares que justificam a edição: a importância que cada um dos destinatários atribui às cartas que recebe, nas quais está ausente a banalidade do quotidiano, a confissão de transvios pessoais ou alheios, muito menos a maledicência centrada nos “outros”, de que a epistolografia, mesmo a dos intelectuais, não é isenta.

A singularidade que encontramos nesta obra desenha-se na sua estrutura e densidade. É incomum reunir num só livro – a excepção só se verifica num repositório antológico ou num dicionário de autores – tantas colaborações e referências de ordem biobibliográfica, contextualizando um núcleo central. Este é constituído pelas cartas que trocaram, ao longo de décadas, mas com maior ritmo de frequência na década de 80 do século passado, duas figuras centrais do pensamento português, referenciais no círculo que, com legitimidade, se pode dizer identitário da “Filosofia Portuguesa” – António Quadros e António Telmo.

Após as primeiras páginas que identificam a natureza do livro, oferece-se ao leitor um “prefácio”, assinado por António Carlos Carvalho, que se detém com incidência memorialista no trajecto filosófico e vivencial de ambos os epistológrafos. Um separador marca a passagem para o corpo central do livro, constituído pela transcrição das cartas, tarefa realizada por Pedro Martins e Afonso Cautela a partir dos originais autógrafos que integram os espólios dos dois pensadores. Trata-se de um conjunto de trinta e três missivas, umas mais extensas do que outras, todas importantes, embora algumas de maior relevância, escritas entre 1959 e 1991. Tivesse o livro sido publicado apenas com estes cadernos iniciais e teria a Editora Labirinto de Letras, com o apoio dos organizadores envolvidos, prestado um inestimável serviço e tributo à Cultura portuguesa, em particular junto daqueles que se interessam ou identificam com o legado filosófico da “Escola Portuense”. Porém, a edição idealizada pelos promotores revestiu-se de outra ambição e estrutura, correndo o risco, é certo, de uma configuração labiríntica, que podia, no limite, trair o essencial e responsabilizar o editor, que não poderia arguir com a atenuante da sua marca identificadora.

Objectivando com maior clareza, o que queremos dizer é que a inclusão neste livro de tão grande aparato de notas – a que acrescem estudos complementares, sínteses biográficas dos que firmaram as cartas e de outros chamados à colação, apreciações críticas cruzadas de Quadros e Telmo sobre a produção literária e filosófica de ambos, textos alheios (António Quadros Ferro e Rui Lopo), prefácio (de António Carlos Carvalho) e posfácio (do Professor João Ferreira) – obriga a um certo ritmo de leitura e separação de conteúdos. Todavia, ultrapassado o primeiro instante de estranhamento, se não intimidação, resultante da densidade dos textos, abre-se uma perspectiva ampla no reconhecimento de um manancial informativo, ensaístico e epistemológico que valoriza não apenas o quadro referencial objecto do livro, mas serve de guia para o conhecimento, aprofundado, do mapa heurístico e simbólico que identifica as duas vias que vem trilhando a “Filosofia Portuguesa” e os que lhe estão próximos, alguns na qualidade de propositores de ideias e até de teses.

Isto significa, numa leitura estritamente pessoal, que nos parece apropriado um exercício de releitura deste epistolário: numa primeira fase, seguindo, eventualmente, a sequência interna do volume, ou, em alternativa, optando por se saltar esta ou aquela parte, que não as cartas e respectivas notas; a segunda fase, ou momento, implica que após a leitura integral da obra, se retorne unicamente às cartas, relendo o seu conteúdo na sequência cronológica e alternada com que foram remetidas por cada um dos dois subscritores. É um plano semântico diferente, é uma transfiguração inesperada que ressalta dessas páginas e parágrafos, porque passam a ser lidos, ou melhor, entendidos, à luz de uma quase “gramática secreta” que deixa compreender esse “movimento do homem” que define, na condição portuguesa, o pensar autónomo, numa matriz heterodoxa. É o que permite esta inter e intratextualidade formada pelos contributos aqui presentes, que chega a induzir uma alteridade no corpus do próprio epistolário, facultada pelo registo historiográfico, documental, biográfico, ensaístico e especulativo que serve a avolumar 300 páginas que incluem, ainda, um caderno ilustrativo, com reprodução de fotografias de tertúlias filosóficas (animadas por discípulos de Leonardo Coimbra em Lisboa), de capas da revista Leonardo e facsímiles de duas cartas e de duas dedicatórias, em livro, de António Quadros e António Telmo, obtidos a partir dos originais.

Retome-se, neste ponto, a estrutura da obra. As XXXIII cartas (apresentadas sob numeração romana), dispostas num alinhamento cronológico e cruzado – o que permite o acompanhamento do diálogo epistolar travado entre ambos –, ocupam as páginas 27 a 184. Todas têm anotações, com maior ou menor extensão, de Mafalda Ferro, Pedro Martins, Rui Lopo e João Ferreira. No geral, as notas servem a explicitar determinadas passagens ou comentários que podem ser estranhos ao leitor, identificam situações, iniciativas, locais e vivências, esclarecem relações familiares ou conviviais, revelam causas determinantes ou resultados e efeitos decorrentes da acção dos dois interlocutores, propiciam sínteses biográficas, bastante completas e actualizadas, daqueles que são invocados ou acessoriamente referidos no decurso do carteio, enfim, registam pormenores e informes de inegável interesse e importância. Segue-se um “anexo” que corresponde a um texto inédito de António Telmo, encontrado no seu espólio, intitulado “O estilo de Leonardo Coimbra”, cuja hermenêutica aponta para fase madura do seu pensamento. Há uma tensão latente nessa dezena de parágrafos, própria de quem se abeira de indizível descoberta, através dos quais António Telmo procura revelar o pneuma, interpretar o “movimento do estilo” leonardino, já que na obra deste filósofo “o pensamento é a respiração do espírito”. Leonardo é o filósofo da razão poética, tal como também se quis António Telmo. Daí que o autor de Filosofia e Kabbalah questione, ou rebata, José Marinho, por este ter afirmado que se pode “conceber” pela imagem. Na verdade, é errôneo pretender que uma imagem vale mil palavras, já que para lá do subjectivismo que a percepção visual sempre implica, que a grandeza lexical vai ainda atomizar, não se pode conferir à imagem a garantia, o fundamento e imutabilidade que só o étimo legitima na palavra enquanto signo.


Uma parte ou rubrica intitulada “depoimentos” reedita texto de António Quadros titulado “António Telmo, filósofo da razão estética”. Por sua vez, a presença “crítica” de Telmo traduz-se no texto “António Quadros, a Lua e a Primavera”, versão impressa do testemunho oral que o autor prestara aquando da homenagem a Quadros, realizada enquanto Sabatina no dia 29 de Outubro de 1993, na Sociedade de Língua Portuguesa, em Lisboa. Os “estudos complementares”, que a capa e o frontispício do livro publicitam, incluem três escritos de diferente autoria e propósito: a) no primeiro, de António Quadros Ferro (neto de António Quadros), sob o título “Em memória de uma amizade”, o leitor acompanha as fases de relacionamento de António Quadros com António Telmo, os momentos da criação de revistas literárias, os projectos editoriais e a recepção dos seus livros junto dos amigos; b) o segundo constitui um levantamento, entrosado de comentário ensaístico, feito por Rui Lopo, acerca da presença de António Quadros no “debate cultural português”, no qual se descrevem os contornos de algumas das polémicas em que se envolveu o filho de António Ferro com outros intelectuais do seu tempo, de Artur Portela (Filho) a José Augusto Seabra; c) o terceiro estudo complementar corresponde a um breve mas penetrante depoimento de Pedro Martins, sob a epígrafe “Os privilégios são difíceis”, no qual o autor partilha a corrente de afecto e amizade que o liga, principalmente, a António Telmo, com o qual conviveu em tertúlia ou num relacionamento pessoal mais próximo, em Sesimbra.

As notas biográficas sobre António Quadros e António Telmo correm por conta de Mafalda Ferro e Pedro Martins aduzindo a presidente da Fundação António Quadros, numa reiterada evocação e tributo a seu pai, numerosos e diversos detalhes de ordem biográfica, sobre a vida social e familiar de António Quadros. Pedro Martins regista o essencial de António Telmo, num alinhamento biobibliográfico.

Encerra o volume, a preceder o índice geral, o “posfácio” de João Ferreira, coetâneo e comum amigo de Quadros e Telmo, professor titular da Universidade de Brasília. Para o estudioso da problemática da «Filosofia Portuguesa», este epistolário é a “expressão do diálogo de dois pensadores-filósofos com forte presença no pensamento português e na filosofia da história de Portugal contemporâneo”. João Ferreira remonta às origens da singularidade do pensamento português, realçando os contributos originados na transição de Oitocentos, em particular de Sampaio (Bruno), Cunha Seixas, Junqueiro ou Pascoaes, e chama a atenção para a importância que teve o movimento da «Renascença Portuguesa», ainda hoje pouco estudado. 

Depois, é o enraizamento no magistério leonardino, a experiência maiêutica da Quinta Amarela e a deslocação dos discípulos e do legado para as tertúlias de Lisboa, nas quais brilharam as inteligências de José Marinho e de Álvaro Ribeiro. João Ferreira aproveita a circunstância para tecer ainda algumas apreciações acerca do pensamento e da “vida conversada” de Agostinho da Silva, esse “estranhíssimo colosso”, na retina de António Cândido Franco, que teve no percurso vivencial e filosófico de António Telmo um papel fundamental.

Com este livro, António Quadros e António Telmo – epistolário e estudos complementares, cuja intimidade revela uma recíproca amizade, um diálogo sustentado em laços simbólicos e filosóficos, irmanando-os no legado da «Escola Portuense», também se celebra, afinal, o espírito da Cultura portuguesa, na sua livre expressão autóctone.