UNIVERSO TÉLMICO. 20
Onde a terra se acaba. 03[1]
Agostinho da Silva
Falando Camões da «piscosa» Sesimbra, o que, se sabe, já deu origem a que um comentador, não entendendo que o poeta se referia a peixes, tivesse explicado gravemente que se tratava de piscos, graciosamente substituindo a asa à barbatana, poderia pensar-se que o verso de que tiro o título geral destas notinhas – «Onde a terra se acaba e o mar começa» – lhe teria vindo à ideia peneirando a vista dos altos do Castelo ou das fragas a que se encosta a Califórnia.
A hipótese é pelo menos boa para que no próximo ano em que se lembra haver-se, há quatro séculos, publicado Os Lusíadas, recorde esta vila o Poeta que algumas vezes a deve ter visitado e pense um pouco, largando a fantasia como quem estende rede nas águas, no que seria ele quando ocorreu a visita ou na comparação que entre duas idades poderia fazer, se em mais de uma oportunidade esteve por estes lados.
Talvez tivesse vindo antes de embarcar para a Índia, depois de o terem soltado do Tronco de Lisboa, pois esteve Camões preso, não por engano mas por culpas; o Poeta, efectivamente, não era de piedosas virtudes, já lhe dando bastante trabalho ser o que era para ainda lhe acrescentar o de fingir que o não era; bastantes vezes falou nos erros seus, mas, segundo parece, era o arrependimento de pouca dura; além de tudo, empregava o Governo como soldado: vivia, portanto, da violência, como não. Pois em Sesimbra o imagino, sabendo-se já contratado para matar, depois de ter sido castigado por quase ir matando, a pensar que a má Fortuna, de que também falou em versos seus, o obrigava, para viver livre, a emigrar, como tantos outros de seus compatriotas emigrariam a construir terras estranhas, só uma delimitando para si próprios, o Brasil, e a fazendo grande como sua grandeza e a carregando de sonhos de futuro, seus próprios sonhos, aqui, desfeitos.
Talvez tivesse voltado depois, exactamente nesse ano de 1572 em que seu poema se ia publicar, com uma vida já quase toda para trás e os anos para a frente se anunciando como difíceis, sem bens, sem companhia, sem amor e quase sem esperança, apenas um raiozinho dela luzindo em D. Sebastião; a esse mesmo lhe apagam os fados em Alcácer; e crê «morrer com a Pátria» porque as ilusões da Índia lhe ocultavam o que seria Brasil e o que poderia ser África.
Quem sabe se a mesma Sesimbra das fronteiras entre mar e terra, inspiradoras do verso célebre, lhe não viu compor os outros versos, dolorosos esses, em que renuncia à voz poética e se queixa da indiferença, do desprezo ou da soberba com que lhe acolheram o poema os poderosos do momento, todos laçados pela ganância dos bens e o prestígio das posições, interessados em estar bem com a camarilha real ou, melhor ainda, fazer parte dela, presos aos negócios com as grandes casas bancárias da Alemanha ou Itália, ansiosos, tanto como el-rei, por uma boa campanha de Marrocos que lhe trouxesse a glória de mandar e a satisfação à vã cobiça, e sempre o desdém por quem pensa e escreve ou, pior ainda, também pensa e não escreve porque nem escrever sabe, ou já desaprendeu, ou o duro trabalho lhe não dá hora vaga.
É bom lembrar o Camões da estátua, e é bom lembrar, para que não mais os haja, o Camões da fome; é bom lembrar o Camões das bibliotecas e das escolas, e é bom lembrar que niguém praticamente lê Camões, a não ser a minoria que o roça lá pelo 5.º ano, ou ainda a menor minoria que ouve prelecção de Faculdade; é bom lembrar o Camões da Fé e do Império e é bom lembrar o que perdeu saúde e sangue, por aí se irmanando com aquela verdadeira sua grei que o mesmo fez e faz por América, África, e Europa e Ásia. Sobre esse segundo bem do contraponto gostaria eu que Sesimbra, lembrando, meditasse.