UNIVERSO TÉLMICO. 14
SeZimbra
Pedro Martins
É conhecida a oposição de António Telmo ao acordo ortográfico. O filósofo sabia bem os riscos de dementação que a sua aplicação envolveria. Infelizmente, vai-se vendo todos os dias que assim é. Mas há motivos para ter esperança.
Na era fria e desoladora da electrónica, recebi ontem uma carta. Anónima. Sem remetente, claro está. Nada que me apoquente.
Fui porém compensado pelo esmero do lavor depositado na identificação do endereço do destinatário. Em lugar da palavra Sesimbra, alguém escreveu Sezimbra. Com Z na sílaba do meio. Mas Sesimbra com o Z justiceiramente traçado em cruz, à Zorro. Um Z gótico.
Ora Sesimbra, tal como Sintra, já se escreveu com C. Na inicial maiúscula, claro está. Nessa altura, o nome da terra grafava-se Cezimbra. Cá está o Z. Cá está o Zorro.
Mais tarde, terá evoluído para Sezimbra. Com o Z de novo. De Zorro. Claro que estas mutações não são lineares. Envolvem períodos de hesitação na grafia. Levou tempo a que Sesimbra, finalmente, se fixasse na fórmula actual, escrita com os dois SS quais serpentes a lembrarem a sombra ominosa do mal.
Vejo assim que o remetente, apesar do seu anonimato, optou por grafia mais benévola. E, sobretudo, bem mais saborosa, no jeito quase arcaico com que deu corpo ao nome da capital da Arrábida. Por isso lhe estou grato. Por este belo e nobre gesto de resistência.
Como quer que seja, já Almada Negreiros, pelo final dos anos 60, consoante nos conta António Telmo, que então o visitou em Lisboa com Rafael Monteiro, asseverava que Sesimbra era tão bela que nem uma bomba atómica a poderia destruir. Agostinho da Silva, que via na Piscosa um microcosmo de Portugal, disse de outro modo a mesma coisa. Chamou-lhe o lugar onde se não morre...