UNIVERSO TÉLMICO. 09
Na edição de hoje do jornal Raio de Luz, mensário de opinião e informação do concelho de Sesimbra, Pedro Martins, na sua habitual coluna, escreve sobre O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra.
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Colosso
Pedro Martins
À atenção da rapariga do mês passado,
Pode parecer irónico, mas não é. O homem que entre nós mais sabe de Teixeira de Pascoaes demora-se por vezes na Rua Fernando Pessoa, onde tem casa. A artéria fica em São João do Estoril e o sabedor chama-se António Cândido Franco. Não lhe revelo aqui a porta, não só porque não sou indiscreto, mas também porque poderia dar azar. Desde já, porém, vos afianço que o número de polícia condiz na perfeição com a vida do nome dado à placa.
Por vezes calha-me visitá-lo, e, pasme-se, acabamos a jantar na Galiza! Não que esta seja aquela em que o leitor já estará a pensar. Trata-se de um bairro silente, conurbado paredes meias com o dito São João, abrindo portas para uma encruzilhada.
Não é pois a mesma em que Agostinho da Silva tantas vezes estacionou depois do regresso definitivo do Brasil, em 1969, no período em que, até ao 25 de Abril, permaneceu em solo pátrio como cidadão estrangeiro. Por mor desta sua condição, tinha volta e meia de transpor a fronteira, elegendo de ordinário os caminhos medievos da Galiza, moça viçosa que, como o filósofo assevera na Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, cedo os fados separaram do seu noivo, Portugal.
Depois, Agostinho regressava ao rincão que o viu nascer. Mas enquanto cirandava por Lugo ou por Compostela jamais esquecia a afilhada Anahi, daqui lhe enviando, por vezes para Sesimbra, postais de um lúdico enlevo saudoso. De tudo isto, e de muito mais, nos dá conta António Cândido Franco em O Estranhíssimo Colosso: uma Biografia de Agostinho da Silva, livro que chegou aos escaparates a 13 de Fevereiro, data do aniversário de Agostinho. É um monumento com mais de setecentas páginas que, como não poderia deixar de ser, está a dar que falar.
Uma semana antes do lançamento, fiz valer o privilégio da amizade fraterna que há mais de uma década me liga ao autor e na noite galega do dédalo cascalense, ao repasto, recebi das suas mãos o ansiado exemplar. O António Cândido já me lançara, dias antes, o repto de uma subida honra, qual seja a de com ele tomar parte na apresentação da obra que em Sesimbra terá lugar, no dia 9 de Maio, no começo das Tardes Télmicas deste ano. Estão desde já convidados!
Acabei há dias de lê-la, numa manhã de domingo, no Café Esperança, e, ao poisar a última página da narrativa, tive sérias dificuldades em reprimir as lágrimas, avassalado por uma comoção súbita e poderosa, tal a força poética que dela se desprende.
Aqui vos quero deixar algumas notas dessa leitura. A primeira, porque afinal se trata de uma biografia, é a de que a cada instante se sente pulsar o frémito da vida nas dobras aluviais das suas laudas. O Estranhíssimo Colosso é um hino selvagem, infrene, inextinguível, e nisto se atesta sua original autenticidade. Sem hesitações, vacilações, complacências, dá bem o retrato de corpo inteiro a esse homem de uma só peça que o biografado soube ser.
Havia por certo o perigo, que é sempre maior no caso de Agostinho, de se cair no devocionismo. Com mestria, mas sem jamais se furtar à admiração do seu colosso, o biógrafo soube evitá-lo. Cândido Franco desfia-nos, de forma nua e crua, o ror de sucessos que ao acaso, em catadupa, de supetão, animam a existência do filósofo. Da caça aos lagartos nas paragens adustas de Barca de Alva às primícias incríveis do imberbe plumitivo no Comércio do Porto; das pautas corridas a vintes nas escolas da Invicta ao doutoramento em raiva ao cair do pano, manu militari, sobre a Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra, com uma dissertação escrita em semanas, aos 23 anos, depois de uma licenciatura em liberdade também coroada pela nota máxima; da afronta corajosa a maiorais como o tolo Agostinho Fortes, o torpe Alfredo Pimenta ou o insidioso Manuel Múrias à obra impressionante de Palhavã, quando, entre biografias e cadernos de iniciação cultural, um só homem, em poucos anos, brinda o povo português com uma verdadeira enciclopédia.
Não é pois um qualquer, este homem extraordinário. Não direi que é único, mas o resultado é impar. Ao longo do século que passou, poucas parcelas haverá a aditar na soma desta conta, em que se apuram quantos, no triste Portugalinho, afirmaram o estro indómito da acção heróica, forjada na experiência e no perigo. Penso, por exemplo, naquele que viria ser o avô de seis dos seus filhos, esse grandioso Jaime Cortesão cuja vida, bem vistas as coisas, em muito prenuncia a do genro.
Não teve quebras, fraquezas, sequer deslizes, este sublime marau que Agostinho da Silva nos saiu? Decerto que sim. Um episódio de excepção confirma a regra do nobre pedagogo e didacta que desde cedo se revelou. Certo dia, em Lisboa, no anfiteatro do Infante de Sagres, colégio do improvável Pavão Leal onde lograra já instituir o município escolar que tempos antes, no Liceu de Aveiro, começara a congeminar, Agostinho, ao cabo de sérios avisos, perde a tramontana perante o auditório em pulgas com um ratinho acossado. Ergue um pupilo e arremessa-o pelo ar de encontro à porta, abatida com estrépito! Pergunto se sem o contraste insólito de um tal desvario poderíamos aquilatar inteiramente o ouro de lei que debruava a envergadura deste homem?
Muito honestamente, Cândido Franco dá-nos ainda conta dos espinhos que houve por entre as rosas do amor, das crises excruciantes de consciência que por isso passou, ou dessa outra em que, na enxovia do Aljube, então às mãos da polícia política de Salazar por ousar pensar livremente a essência do cristianismo e da sua doutrina, parece abdicar, numa carta de retractação, de quanto até então propugnara. Ainda aqui, Cândido Franco vê muito bem, como compete a biógrafo que se preze. O caso não é de derrota ou de desistência. Será talvez dissimulação; ou antes a sincera metanoia que, por essa década de quarenta, se começa a topar na evolução espiritualista do seu pensamento, num trajecto a que o Brasil, com o Pessoa (cá está ele, ó António Cândido!) na bagagem e os encontros sebastianistas com os sertanejos da Paraíba, dará curso largo.
Que fez Agostinho por terras de Vera Cruz? Sobre isso seria mister (e por que não?) haver uma outra crónica. Para vos falar da sua bondade, do seu génio oratório, do entusiasmo com que concorre a fundar universidades, do desassombro com que, em circunstâncias as menos críveis e as mais difíceis, institui centros de estudos – o da Baía, dos Afro-Orientais, é ainda hoje o testemunho vivo e glorioso de um bicho-carpinteiro contumaz…
Entre a renúncia ao mundo, no que este tem de mundano, e a afronta ao mando, onde apenas vê desmando, Agostinho é realmente um colosso – o colosso. Estranhíssimo, como diz Cândido Franco, tomando de empréstimo o verso de Camões? Como não, se o vemos a passear, pelo campus de Brasília, com a japonesa que desde Tóquio lhe segue os passos até à Trapa, os dois de quimono vestido, açulando, exóticos, o pasmo dos circunstantes? Como não, se ao Presidente Soares, seu explicando meio século antes, manda dizer, já nos anos finais de Lisboa, que somente o poderá receber, na Travessa do Abarracamento de Peniche, daí a uma semana, pois, sobre ter de ensinar a ler a sua empregada doméstica, até lá já ele tem muita conversa aprazada com os amigos? Como a amigo lhe quer ele franquear a porta, e não como a Presidente, caso em que o não poderá insultar…
Eis o cerne intocável da hombridade que o nosso biógrafo, neste livro, nos resgata de uma vez por todas, para sempre. Desejavelmente, outras biografias de Agostinho virão a ser escritas, e talvez nem esta, que é a primeira, escape a segunda demão. Mas nenhuma das outras poderá fugir ao estalão agora instaurado. Neste sentido, O Estranhíssimo Colosso é um livro definitivo.
Sabendo tirar o máximo proveito das fontes de que entendeu lançar mão, e abrindo novos caminhos no estudo do escritor que nunca quis ser filósofo, faceta que a menos se tem atendido em detrimento do pensador ou do homem de acção, António Cândido Franco dessacraliza Agostinho para melhor o exaltar, envolvendo o leitor e o biografado numa trama irresistível de cumplicidade, urdida pelo emprego recorrente do pronome possessivo meu. Sagrado, de sacer, é o que está distante, e este Agostinho da Silva é um companheiro…
Surtido da monta deste tomo, um outro efeito magnífico vem no modo como nos mostra que Agostinho atravessa o século para o iluminar com o fulgor incandescente dos cometas. Andarilho, corre mundo, sem deixar um só continente que seja à margem da sua peugada lendária. E as amizades são um bruaá de multidão na sua vida. O Estranhíssimo Colosso pode bem ser uma hagiografia, como alguém, incompreensivo, já acusou; mas Agostinho da Silva, graças a Deus!, não sai dele como um santarrão, muito menos como um totem. Deste risco escusado nem sempre se têm sabido ou querido libertar quantos justamente o elevam. Talvez agora sejam forçados a reconhecer que a grandeza do mestre está menos nos passos em volta do que na vida conversável que a sua farta fratria nos sugere.
Saber admirar, eis o segredo do António Cândido. Por estes dias, vieram , como se fosse proibido havê-los por cá. Até o acusaram de impressionista. Pela minha parte, concedo. O Estranhíssimo Colosso vale bem, numa das suas margens, todo o Museu d’Orsay. Na outra descobre-se o Louvre, Delacroix, A Liberdade guiando o Povo… alguns, polícias do estilo, presuntivamente escamados com a estatura insolente do velho sublime, repreender o biógrafo por ter exaltado um dos grandes homens portugueses