«OS MEUS PREFÁCIOS». 14

03-01-2018 12:37

Carta prefacial a O Anjo e a Sombra, de Pedro Martins[1]

 

Meu estimado Amigo Pedro Martins

Li pela segunda vez o texto do seu livro e, como da primeira, senti que estava perante um momento decisivo da evolução da alma portuguesa.

A alma portuguesa recolheu-se, como sabe, na filosofia derrotada, tal como a denominou Orlando Vitorino significando com isso que não há hoje condições de levar ao povo o que é do povo e há pois que esperar o dia do Advento, quando a desolação for total.

O Pedro Martins podia ter sido um campeão da filosofia triunfante, se persistisse em pensar sem expectativa pelo declive fácil de uma qualquer carreira universitária ou política. Devo confessar-lhe que, não obstante os laços de amizade que nos puseram a mim e a si colaborantes em vários momentos de expressão cultural e até cultual, não esperava que, de repente, efeito talvez de um fiat lux, emergisse da Sombra da sua alma o Anjo do seu intelecto a dizer-nos as palavras que faziam falta e que ainda não tinham sido ditas sobre Teixeira de Pascoaes e a filosofia portuguesa, a filosofia portuguesa e a redenção de Portugal.

Antes de si, na sua geração, já havia o Pedro Sinde com O Velho da Montanha –  A Doutrina Iniciática de Teixeira de Pascoaes. Mas o Pedro Sinde nasceu já com o sentido do caminho. Bastou-lhe olhar para ver. O seu caso é diferente. Foram-no buscar.

Não me explico de outro modo a transfiguração que, subitamente, recebeu o seu pensamento (veja “o pensamento” como sujeito gramatical). É verdade que ambos conhecemos as estranhas circunstâncias que envolveram a emergência do seu livro. Uma reacção e, depois, o relâmpago.

Hoje, vejo claramente porque lhe foi distribuído o papel de compassar a filosofia portuguesa tendo por ponto fixo Teixeira de Pascoaes e por ponto rotativo o pensamento de Álvaro Ribeiro.

O Pedro Martins trazia atributos que raramente convivem entre si na mesma pessoa: uma clara inteligência, até excessivamente clara a ponto de ser prejudicada pela rapidez do raciocínio; uma capacidade de trabalho perfeitamente adequada ao exercício dessa inteligência; intuição e imaginação; limpidez moral que o punha pronto a combater pelo que se lhe afigurasse ser o bem e a verdade; e era sobretudo atraído pelo “mistério da beleza, primeira e última, da metáfora”, tal como lhe aparecia na arte e na natureza.

Terá sido tal constelação de atributos que decidiu da “escolha”? Creio que sim, embora nestes casos permaneça quase sempre meia oculta a verdadeira causa.

Antes de terminar esta carta, gostaria de deixar um aviso. Eu sei por experiência própria que cada livro que escrevemos é como um espelho em que projectamos o que no momento é o melhor de nós. A luz que ilumina o espelho vem do nosso próprio olhar. Envolve-nos um fascínio que é uma inteira criação da nossa imaginação. Tal envolvimento pode levar à perda do dom de pensar em expectativa.

Mas, sem envolvimento, não há desenvolvimento. De livro para livro, vamos mudando de pele como a cobra até à perfeita desnudificação. Depois, “o mais é com Deus”. Desejo-lhe as maiores felicidades para si e para o seu livro.

 

António Telmo



[1] Pedro Martins, O Anjo e a Sombra – Teixeira de Pascoaes e a Filosofia Portuguesa, s/l, Pena Perfeita, 2007, pp. 11-12.