«OS MEUS PREFÁCIOS». 13
Apresentação de Vigília Ardente,
de Carmo Martins[1]
Há, na província, espíritos assistidos pelo génio poético, que, por dificuldades editoriais, se vêem obrigados a perder alguns dos seus melhores poemas em páginas de jornais que nunca mais ninguém volta a ler e guardam os restantes num dossier onde sonham o seu primeiro livro. São os mais genuínos, porque escrevem sem a compensação do aplauso. Mas, quando a obra é válida, isto é, quando traz em si aquele elemento misterioso que espiritualiza a humanidade, mais tarde ou mais cedo, às vezes só depois da morte, as circunstâncias compõem-se para os tornar conhecidos do mundo.
Finalmente, após muitos anos de ansiedade dos amigos, entre os quais tenho a honra de me poder contar, reuniram-se os factores concorrentes para que Carmo Martins pudesse publicar o seu primeiro livro.
Anuncia-se nele um poeta da estirpe de Mário Beirão, Florbela Espanca e Azinhal Abelho. Citamos três poetas nascidos no Alentejo, entre sobreiros e azinheiras, nesta terra que o espírito parece ter abandonado mas que tem na largura dos horizontes o sinal de uma infinita esperança. Teixeira de Pascoaes escreveu do alentejano que esqueceu Maomé e não chegou a conhecer Jesus. Mas Leonardo Coimbra, passando um dia por Estremoz, viu, numa tarde, de sol alucinante, a luz do Alentejo como a energia em que fraternizam todos os seres.
Carmo Martins nasceu em Monsaraz, como Azinhal Abelho na Orada e Florbela em Vila Viçosa. Nessa pequena vila, outrora desconhecida e esquecida, que hoje o turismo descobriu para os estrangeiros, viveu descuidadamente o fluídico perpassar dos dias «que brotam da rocha viva, da fonte original». O extraordinário poema “Elegia do Tempo Quebrado” conta-nos como, aos dez anos, na crise da puberdade, a criança, que então era, de súbito se sente acordar para o sentido do mistério da vida e das coisas. Aconteceu assim que a estrada de Damasco é agora a estrada que sobe até Monsaraz ladeada de amendoeiras e desce, por córregos, até ao Guadiana em cujas águas se reflecte o passado e as eras mortas.
Todos os altos, sobretudo nas grandes extensões planas, são altares. Ainda as águas do rio fluíam na sombra, já os primeiros raios do sol doiravam Monsaraz e a flor das suas amendoeiras. É entre o sentimento de um nascer que é morrer e o da morte, no alto da estrada onde esplende a manhã, que decorre a visão poética de Carmo Martins. A sua vida interior é uma viagem de inquietação, de reflexão, de procura e o poeta nem pela contemplação da natureza encontra o sossego ou a quietação porque «todas as criaturas gemem».
Todavia, da leitura deste livro não se sai manchado de pessimismo, mas rico de uma nova espiritualidade. O poeta tem o dom da atenção perfeita, uma atenção que se prolonga e mantém da coisa vista para a palavra que a há-de traduzir. Se é um facto que todas as criaturas gemem, não é, no entanto, pela dissolução dos seres no absoluto da matéria, como advogam certos cientistas, ou no absoluto do Ser divino, como querem os orientalistas, que se conquistará a Paz. O valor do Cristianismo reside, em grande parte, no reconhecimento de que cada criatura possui a sua singularidade, indispensável na economia dos mundos. O mal não está em ter nascido. Todos os sinos tocam quando uma criança nasce. O mal está em contrariar o impulso divino da criação.
Gostaria de exemplificar este e outros aspectos com os versos a que correspondem, mas uma apresentação não é um estudo crítico. O leitor não lê um livro de poesia, sobretudo de lírica, como lê um livro de prosa, do principio ao fim, seguindo o itinerário marcado pelo autor. Folheia-o como quem desfolha. Aqui lê um poema, ali outro. Se gosta, continua a ler. Muitas vezes nem chega a sair da livraria onde vai comprá-lo. É esta a razão porque a poesia se vende tão pouco. Compra-se o que já está consagrado ou o que foi objecto de uma propagada bem conduzida.
O livro de Carmo Martins segue um plano significativo da ideia expressa no título, pelos seguintes passos: Deus, Infância, Poeta, Natureza, Inquietação, Conditio Moriendi, os seis momentos da vigília da alma.
Não é, pois, Vigília Ardente uma colecção de poemas que se terão juntado para satisfazer o volume ou a quantidade requerida para formar livro. Importa, por conseguinte, lê-lo de princípio a fim, embora cada poema valha por si próprio.
E o autor? Conheço-o bem melhor através do que escreveu do que através dos já longos anos durante os quais me tem sido dado conviver com ele. Vivemos ambos em Estremoz. Encontramo-nos por vezes à noite, depois do jantar, no Café. Acompanha, tranquilo, a banalidade das conversas no grupo que se forma nas mesas perto do balcão, como se o seu espírito fosse tão banal como elas. Ninguém suspeitaria que estivesse ali uma alma superior, cheia de abismos e luz, se não fosse bem sabido que a preocupação de ter conversas intelectuais é quase sempre o sinal de um espírito superficial. «Falemos de casas»...
António Telmo