«OS MEUS PREFÁCIOS». 09

31-01-2015 10:51

PREFÁCIO A O BRASIL MENTAL, DE SAMPAIO BRUNO[1]

 

O Brasil Mental foi, pela primeira vez, editado em 1898, cinco anos depois das Notas do Exílio e quatro anos antes de A Ideia de Deus. O tempo que decorreu entre o primeiro e o terceiro destes livros formou o período de gestação do pensamento filosófico de Sampaio Bruno, como se não fosse o acaso a marcá-lo com o número nove. Os livros que o antecedem – Análise da Crença Cristã e A Geração Nova – estão ainda presos ao materialismo ateu que, sob a pressão das ideias correntes da época, marcou o rumo da ideação do filósofo até aos trinta e cinco anos, antes de se converter ao evolucionismo espiritualista de inspiração gnóstica e cabalista, cuja formulação mental viria a atingir a perfeição com o livro sublime.

Significa isto que O Brasil Mental, sendo como é a fase de um processo deve ser lido relativamente às Notas do Exílio e à A Ideia de Deus, sem o que a filosofia da história nele exposta corre o risco de ser compreendida como exclusivamente materialista. Com efeito, as doutrinas que ali aparecem a constituir a base dessa filosofia são, predominantemente, o positivismo de Augusto Comte, o evolucionismo de Herbert Spencer e o economismo de Carlos Marx. Sampaio Bruno não refuta o positivismo, corrige a lei dos três estados aceitando a classificação das ciências; não refuta nem aplaude o marxismo, apresenta-o simplesmente, não deixando porém, de o utilizar e de o aplicar no modo, exclusivamente economista, como interpreta a história de Portugal. Tal é o valor que atribui à vária, mas convergente, doutrinação progressista que, reagindo contra Proudhon, escreve: «Que nos quer ele, a nós, que partimos de Diderot e que, por Auguste Comte, o maior colosso mental do século, chegamos à sistematização evolucionista de Spencer, ao socialismo científico de Marx, às intuições sociológicas do americano Giddings!»

A filosofia da história de Sampaio Bruno não é, porém, nem positivista nem marxista. De Comte e de Marx, como de Spencer, o que destaca e retém é a possibilidade de entrar em linha de conta com o tempo, não já servo do espaço, pela estabilidade dos ciclos que voltam sempre ao ponto de partida nesse mesmo espaço, prendendo a humanidade e o mundo à fatalidade do mal. Daí a sua refutação do monismo, pelo qual a mesma substância permanece inalterável na variedade dos modos. Nem monismo nem dualismo. Mas, sem A Ideia de Deus, o evolucionismo pensado por Sampaio Bruno mal se distingue dos outros evolucionismos, tais como vêm expostos n’O Brasil Mental. Por outro lado, A Ideia de Deus sem a experiência do exílio envolver-se-á de irredutível obscuridade.

Foi, pois, de 1893 a 1902 que surgiu e se formou o pensamento filosófico de Sampaio Bruno. O momento decisivo foi o do exílio. Ali deflagrou a chispa de luz. Uma nova, antes inexistente, emoção alterou, transfigurando, o materialismo ateu da Análise da Crença Cristã no materialismo espiritualista de A Ideia de Deus. A «Carta Íntima» é o documento que torna completamente verosímil a tese de Álvaro Ribeiro dando a iniciação ou iluminação de Sampaio Bruno como tendo acontecido em Paris, para onde foi desterrado em consequência da sua participação no movimento revolucionário de 31 de Janeiro de 1891. É a «Carta Íntima», que antecede A Ideia de Deus, um texto autobiográfico. Aqui nos fala Bruno da crise interior que o assaltou longe da Pátria, em analogia com a experiência de Dante:

«Quase sempre, essa crise interior nos assalta a meio da caminhada da existência.» Bruno tinha como Dante trinta e cinco anos quando iniciou a viagem. «Tu recordas o florentino terrível:

 

                                                      Nel mezzo del cammino di nostra vita

                                                      Mi ritrovai per una selva oscura,

                                                      Chè la diritta via era smarrita.» 

 

E depois, no seu jeito de trazer para casa o estranho e o distante: «Um português, o Sr. Domingos Enes, traduziu, parafrasticamente:

 

                                                     Em meio do caminho desta vida,

                                                     Achei-me, um dia, numa selva escura,

                                                     Muito longe da senda, já perdida.»

 

Como o vate, que desceu ao Inferno, a alma ansiada remonta a rever as estrelas:

 

                                                     «Lo Duca ed io per quel cammino ascoso

                                                     Entrammo a ritornar nel chiaro mondo:

                                                     E senza cura aver d’alcun riposo.

 

                                                     Salimmo su, el primo ed io secondo,

                                                     Tanto ch’io vidi delle cose belle

                                                     Che porta il Ciel, per un pertugio tondo:

 

                                                     E quindi uscimmo a riveder le stelle.

 

Ou seja, na versão do Sr. Domingos Enes :

 

                                                     Pelo árduo trilho, junto ao curso manso,

                                                     Nós buscamos depois ter a ventura

                                                     De entrar no claro mundo. E, sem descanso,

 

                                                     ‘Pós do Mestre subi a senda escura;

                                                     Do Céu as maravilhas pude vê-las

                                                     Afinal, através de uma abertura.

 

                                                     E, saindo, revimos as estrelas.»

 

A ideia que, neste ponto, se nos impõe, da perspectiva derivada da leitura de O Brasil Mental, que motiva esta introdução, é que a filosofia da história, tal como a pensou Sampaio Bruno, neste livro e depois n’O Encoberto se faz pelo modelo do seu próprio itinerário espiritual. É verdade que a história de Portugal é nele interpretada de um ponto de vista exclusivamente economista. O quadro que pinta dos sucessivos momentos de uma miséria iludida por uma vida, aparentemente faustosa, sustentando-se de empréstimos, de roubos e de pirataria, tem por fim levar os espíritos à consciência do povo que são, acentuar o sentimento de uma crise interior colectiva donde possa saltar a chispa de luz que nos incendeie para uma nova vida. Mas esse incêndio ou essa iluminação já se deu: sua suprema expressão é a Pátria de Guerra Junqueiro. Dedica-lhe cerca de trinta páginas do primeiro capítulo de O Brasil Mental. Falar da Pátria diz ele que é «revoar para as zonas transcendentes». Para o acordar dos espíritos, só o movimento de 31 de Janeiro de 1891 se lhe compara:

«Todavia, concatenando, sempre conseguiremos explanar, de golpe, o alcance, histórico e social, do poema de Guerra Junqueiro. Ele fica determinado quando se apure, através das paixões do momento, que este livro afirmou (mercê das características intrínsecas, corroboradas pelo efeito exterior, correspondente, do seu êxito de venda) um momento culminante. Este foi o acume do progressivo – ainda que moroso – processo de desagregação da alma colectiva, desprendendo-se dos sentimentos tradicionais e abandonando, enfim, as suas velhas crenças, na troca de outras novas, mais retributivas e salutares.

A acção da obra sobre a consciência pública mostrou-se, assim, das mais vastas e profundas; o seu influxo ético, a sua permanência orientadora distinguir-se-á, a todo o tempo, como um dos fenómenos críticos mais notáveis da nossa cultura hodierna.

Senão, mesmo, o mais notável, pois que, na ordem espiritual, como generalidade e compreensividade de acção, nada existe que lhe seja assemelhável. Com efeito, só no domínio dos factos concretos qualquer coisa se lhe possa aditar, no mesmo sentido de convergência e com análoga flagrância de resultados sucessivos. É o movimento de 31 de Janeiro de 1891.»

Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro representam, de facto, o binómio que, por irradiação, virá formar, no século XX, o hexagrama central do pensamento português, no diálogo sucessivamente renovado com a poesia. Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, José Marinho e Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro e José Régio não teriam podido ser o que foram sem o fulgor nascido do encontro daqueles dois. Os restantes escritores de razão ou de imaginação que, hoje como ontem, têm tido algum valor no domínio do espírito volitam todos à volta daquela estrela que ergueu o pensamento português às zonas transcendentes. É no binómio Sampaio Bruno – Guerra Junqueiro que está a força propulsora, pela fascinação da Ideia, do criacionismo, do saudosismo e do futurismo que marcaram a doutrinação dos que se lhe seguiram, por vários modos trazendo ao domínio do pensamento a religião da Pátria.

O renascimento que se deu na literatura filosófica não foi acompanhado, como o sonharam os dois, pelo renascimento no domínio político. Neste, apesar da República, a desagregação da alma colectiva prosseguiu. Bruno, meses depois da queda da Monarquia, retirou-se da cena política. Tão certo é, como escreveu Hegel, que a ave de Minerva só voa ao anoitecer.

 

Foi, então, o movimento da Renascença Portuguesa um fogo-fátuo à superfície do corpo político? A noite que vem depois do anoitecer não é o domínio da ave de Minerva? E o que será a antemanhã dessa noite?

Muitas respostas para estas perguntas encontrou, de certo modo, o leitor que leu o Plano de Um Livro a Fazer que Joaquim Domingues superiormente organizou, prefaciou e anotou em recente edição da Imprensa Nacional. Ali se verá, se não se viu, que é durante a noite que floresce a árvore da sabedoria à volta da qual se juntam os Cavaleiros do Amor. Essa árvore tem, porém, um nome: Kabbalah.

Todo o sistema filosófico de Sampaio Bruno, se sistema devamos dizer, provém desta zona misteriosa. Na conjectura de Álvaro Ribeiro, derivada daquela citação de Dante de «Lo Duca ed io», terá sido de Joséphin Péladan que Bruno recebeu o ensino que o transformou num iluminado. Todavia, pelas Notas do Exílio, é-nos dado ver que foi na Holanda e não em França que tudo teve início. É de presumir, sem receio de engano, que o filósofo terá visitado a Biblioteca dos judeus portugueses de Amesterdão, cujo nome de Árvore da Vida (Etz Haiim) é já de si uma alusão ao pensamento cabalista de Isaac Lúria. Este pensamento ter-lhe-á aberto o espírito para o supremo sentido da sua experiência do exílio.

Com efeito, uma boa hermenêutica d’Ideia de Deus e, à luz desta ideia, da filosofia da história de O Brasil Mental, revela tão impressionantes coincidências entre o pensamento filosófico de Sampaio Bruno e o pensamento cabalista de Isaac Lúria que só o respeito pelo génio original do nosso filósofo, pelo génio que o inspira, nos pode fazer duvidar de que ele tivesse lido os escolastas de Safed. A ideia basilar é a de Deus em exílio de si próprio na sua mesma substância procurando reintegrar-se pela recuperação das «parcelas de luz», por cuja queda na matéria, mais precisamente por cuja queda que faz a matéria se encontra actualmente «diminuído». Os agentes da recuperação são os Anjos, emanações de luz em migração que comunicam com o homem, trazendo-o a participar no fim comum de redimir a natureza. A oração é eficaz porque chama o espírito puro ao espírito alterado. O Universo é movimento porquanto todos os seres, logo após a inexplicável queda em Deus, buscam regressar ao homogéneo inicial e, por isso, a ideia de Deus é a do Espírito interessado, pessoal, próximo, mas invisível, que acompanha o homem, principal centro dos seres naturais, e o seu povo Portugal-Israel ou Portugal-Humanidade, durante o grande exílio universal, drama imenso cujo desenlace se dará com a vinda do Messias, Paracleto ou Novo Cristo.

Repare-se que não há um só ponto desta doutrina que não possa ser referido à ideia de exílio. É o que lhe dá o tom próprio e vivencial. Ora tal característica encontramo-la predominantemente na filosofia de Isaac Lúria. Seguimos, ao evocar os principais aspectos desta filosofia, a lição de G. G. Scholem em Correntes da Mística Judaica.

Em primeiro lugar, a doutrina do Tsimtsum (concentração, contracção), segundo a qual Deus se teria retirado de si próprio para a realidade insondável da sua solidão imensa, deixando assim lugar para a criação do mundo. «Tentou-se interpretar esta retracção em termos de exílio, como se Deus se houvesse expulsado do seu todo numa profunda reclusão. Encarada assim, a ideia do Tsimtsum é o símbolo mais profundo do exílio, mais profundo até do que a Quebra dos Vasos. Na Quebra dos Vasos, qualquer coisa do ser divino é exilado fora d’Ele, mas o Tsimtsum pode ser interpretado como um exílio de Deus em Deus.»

Em que consiste a Quebra dos Vasos? «Primeiramente, as luzes estavam reunidas num todo (homogéneo inicial de Bruno), sem nenhuma diferenciação entre as Sephiras: neste estado, não precisavam de taças, copas ou vasos que as contivessem.»

«Os vasos correspondentes às três sephiras supremas abrigaram a luz emanada do Ain Soph, mas, ao ser recebida pelas seis sephiras seguintes, essa luz irrompeu de um jacto e a pancada foi tão grande que os vasos se quebraram e se fizeram em pedaços. O mesmo se deu, embora em menor medida, com o vaso da última sephira.»

Lúria explica como os gnósticos a queda dos átomos de luz divina até às profundidades mais baixas.

«Os mundos inferiores e infernais do mal, cujo poder se sente em todos os estágios do processo cosmológico, nasceram dos pedaços que retinham ainda alguns raios da Santa Luz. Deste modo, os bons elementos das esferas divinas misturaram-se com os elementos tenebrosos. Reciprocamente, a restauração da ordem ideal, que forma o objectivo original da criação, é também o fim secreto da existência. A redenção significa, pois, a restituição, a reintegração, o restabelecimento do todo original.»

A filosofia de Sampaio Bruno deve ser referida mais à Quebra dos Vasos do que ao Tsimtsum, apesar da ideia basilar do exílio de Deus em Deus. A ideia da Quebra dos Vasos, conquanto não explicitamente mencionada, está presente ali onde Bruno fala da alteração do Espírito Puro e das «parcelas luminosas espalhadas pelo mundo tenebroso». Os átomos que resistem, correspondem aos pedaços, aos fragmentos dos vasos.

Uma imensa, profunda religiosidade impedia Bruno de formular uma explicação que desse a razão da Queda em Deus, mas tinha de admitir tal queda para compreender a existência simultânea de Deus e do mal no mundo. Não chegou pois, a dizer como Isaac Lúria que todo o processo cosmológico se deve explicar como o processo que Deus desencadeou para se libertar do mal. Posto isto, compreende-se que: «O processo pelo qual Deus se concebe, se engendra e se desenvolve não depende completamente de Deus. Determinado papel, no processo de reintegração, é atribuído ao homem. As luzes, em cativeiro na matéria resistente e obscura, não se libertam pelo seu próprio esforço. É o homem que põe o ponto final na impossibilidade divina. É o homem que completa a entronização de Deus, – Rei e Criador de todas as coisas – no seu Reino dos Céus, é o homem que completa o Fabricador de tudo! Em certas esferas do Ser, entrecruzam-se o humano e o divino. O processo intrínseco extraterreno do Tikkun (reintegração) é descrito simbolicamente como o nascimento da personalidade de Deus e corresponde ao processo da história terrestre.»

Ouça-se, em ressonância, Sampaio Bruno: «O fim do homem é ajudar a evolução da natureza.»

«A partir da diferenciação inicial do espírito homogéneo e puro, consecutivamente, decaída, a parte diversificada buscou regressar à origem. Eis porque seja que o movimento resulte o facto irredutível, característico do mundo. O movimento é o início e o fundamento de tudo, porque seja o avance na série de formas evolutivas, com o fito final do regresso ao espírito homogéneo.»

«Se um triste ateísmo a não adoecesse, seria por este fundamento recôndito que Clémence Royer poderia justificar a sua ideia de que cada átomo sente e quer, segundo motivos percebidos, como excitações motoras reflexas, que determinam os seus movimentos.»

Não está mal que neste momento, transcrevendo mais um texto de G. G. Scholem, joguemos um jogo, talvez pouco recomendável mas perfeitamente esclarecedor, que é o de nesse texto substituirmos o nome de Isaac Lúria pelo de Sampaio Bruno, alterando em consequência certas referências, como seja, por exemplo, a dos Judeus:

«Em suma, podemos considerar a Kabbalah de Sampaio Bruno uma interpretação mística do exílio e da redenção ou até um grande mito do exílio. A substância dessa Kabbalah reflecte os sentimentos dos portugueses desterrados na sua própria Pátria. Para eles, o exílio e a redenção são, do modo mais exacto, grandes símbolos místicos. Esta nova doutrina de Deus e do Universo corresponde à nova ideia moral da humanidade que propagou nos seus livros: o ideal do filósofo, cujo fim é a reforma messiânica, a transcensão do mal do mundo, a reintegração de todos os seres em Deus. Assim, o homem de acção espiritual, graças ao movimento que recebe dos Anjos, pode quebrar o exílio, o exílio histórico de Portugal, o da humanidade, e este exílio interior no qual gemem todas as criaturas.»

Regressando a O Brasil Mental, estamos agora em condições, julgamos nós, de entender o interesse que Sampaio Bruno pôs naquelas doutrinas contemporâneas caracteristicamente evolucionistas. E com elas o papel da Ciência, por cujo desenvolvimento se define a idade positiva de Augusto Comte. Não há n’O Brasil Mental uma refutação repudiando o positivismo. Há uma correcção que o admite com a reserva de se pensar que a Ciência positiva é também essencialmente ciência de Deus e, portanto, teologia. Para que assim seja, também, ela, a Ciência precisa de ser corrigida, banindo a noção de inércia e o cálculo das probabilidades que a reduzem a um monismo mecanicista.

No termo deste prefácio, relembrando, reparamos enfim que nada dissemos sobre o Brasil, como se o título do livro nada tivesse que ver com as «mentações» nele apresentadas e discutidas. O Brasil Mental porquê? Álvaro Ribeiro deixou-nos uma explicação n’Os Positivistas. No período em que escreveu esta obra (1951) pensava ainda ser Sampaio Bruno um adversário, sem mercê, do positivismo, opinião que viria a abandonar mais tarde, por influência, que declarou, de Amorim de Carvalho. Havendo observado que não há, nos livros de Bruno, uma única palavra de desprimor sobre Teófilo Braga e muitas de sincera admiração, foi levado a conjecturar que a amizade pessoal e a confraternidade republicana tinham impedido o nosso filósofo de visar o positivismo enquanto coisa portuguesa, salvaguardando-as àquelas, destacando-o como coisa brasileira. De facto, a forma como Sampaio Bruno trata os intelectuais brasileiros chega a ser rude e violenta, roçando, por vezes, o sarcasmo.

Acusa os brasileiros de não gostarem dos portugueses, de chegarem ao ponto de atribuírem origens diferentes ou disparatadas à língua falada no Brasil e à língua falada em Portugal. A diferença que, por desventura, exista entre as duas explica-as ele pelos barbarismos africanos que terão contaminado e deformado a fonética, a morfologia e a sintaxe da língua original. Demora-se a mostrar e a demonstrar esta tese. Mas surpreendemos nas palavras que ferem um toque, mal escondido, de tristeza. Tristeza essa que também nos invade quando supomos latente uma unidade interior, profunda e transcendente na imanência da língua comum, entre os dois povos, contudo deles ignorada, sem que as conexões superficiais bastem para suster o progressivo afastamento. Não terá sido, pois, para recuperar essa unidade interior e a consciência dela, à semelhança do que fez Agostinho da Silva, em múltiplos escritos, que foi pensado e executado O Brasil Mental?

O positivismo adquiriu no Brasil a forma de um catolicismo sem Deus, com o seu ritual em volta da deusa Razão. Entretanto, em Portugal, dealbava ao longe, mas suficientemente próxima, a República positivista. Sampaio Bruno via em ambas abjecções que vinham paralisar o movimento evolucionista no momento preciso em que, pela Pátria de Guerra Junqueiro, a lusitanidade tomava consciência de si e acordava para o sentimento do exílio, promissor da liberdade vindoura. Igual tomada de consciência se esperaria nos brasileiros. Em vez disso, surgem no Brasil, como mais tarde vão surgir em Portugal, na roda de António Sérgio, sucessivos ataques ao poeta e ao seu livro.

Sampaio Bruno responde à letra e fala ao espírito. É desta reacção libertadora que emerge todo O Brasil Mental.  

 

António Telmo


[1] Sampaio Bruno, O Brasil Mental, 2.ª edição, Porto, Lello, 1997, pp. 7-15.