«OS MEUS PREFÁCIOS». 07

20-09-2014 14:27

PRÓLOGO A POR OUTRAS PALAVRAS, DE IVONE DE MOURA[1]

[Ferdinand de Saussure]

 

Este livro de recolha de expressões e de frases idiomáticas, com seu significado e suas aplicações, além da utilidade que, porventura, possua no domínio da aprendizagem da língua portuguesa por estrangeiros, gratifica quem pretenda surpreender a língua na originalidade do seu génio inventivo. Idiomático, com efeito, significa o que é próprio (do grego idios), no sentido de único ou original. A velha expressão de “frases idiomáticas” tem, todavia, o defeito, pelo destaque que produz no conjunto da língua, de fazer esquecer que toda ela é um idioma, como quem dissesse que numa língua só há de próprio as frases que se dizem idiomáticas, sendo o resto facilmente convertível nas formas faladas pelos outros povos. Idiomático significaria então o que é intraduzível e daí derivaria a utilidade de um dicionário de frases que, traduzidas palavra a palavra para outra língua, perdem o sentido que têm ou ficam até sem sentido nenhum. Por exemplo, se traduzirmos tanto me dá por tant me donne, nunca mais um francês saberá que está perante um ça m’est égal.

É famoso o texto de Teixeira de Pascoaes que dá por intraduzíveis algumas palavras da língua portuguesa, como, por exemplo, ermo e saudade. Como se sabe, o poeta identificava a saudade com o génio feminino do nosso povo. Compreende-se que ele destacasse algumas palavras para a natureza inconfundível do nosso sentimento e do nosso pensamento. A verdade é que todas as palavras, no plano poético em que Pascoaes as situa, são intraduzíveis. Isto é, não há nas outras línguas termos que lhes correspondam exactamente. Mais claramente impossível é dar noutras línguas o modo de dizer da nossa.

Dir-se-á que esse é o ponto de vista de um poeta e não dos linguistas. Poeta é o que faz a língua, linguista o que a ensina. Por outro lado, o poeta parece gozar do privilégio de autoridade, tanto mais se for verdadeiro o adágio de que “quem sabe faz, quem não sabe ensina”. O que é que ensinam os linguistas?

O mais notável de todos eles, porque estabeleceu os princípios que, aplicados ou desenvolvidos, deram toda a linguística do século XX, é, sem dúvida, o suíço Fernando Saussure. O primeiro desses princípios é o que diz que a relação entre o significado e o significante é convencional ou arbitrária. O mesmo conceito, argumenta ele, exprime-se nas diversas línguas por sequências sonoras diferentes, o que vem provar que entre o conceito e a sequência sonora (a palavra) que numa dada língua o significa, não há uma relação necessária. Dá como exemplo as palavras boi e boeuf. As diferenças fonéticas não alteram o conceito que o homem forma do animal e muito menos introduz um novo conceito. Ouvi contar a seguinte anedota. Numa universidade francesa, um aluno depois de ter ouvido o professor expor o argumento de Saussure, pôs toda a gente a rir com a seguinte observação : “Quer dizer” disse o aluno “entre o conceito e as palavras que o significam em duas ou mais línguas só haveria uma relação necessária se essas palavras fossem exactamente iguais”. Os outros riram-se mas era o aluno quem tinha razão. O argumento não é argumento porque afirma o que se pretende provar, é uma petição de princípio.

A ilusão de que é possível traduzir, transportando na tradução tudo o que foi dito, resulta da correspondência que facilmente se estabelece entre termos destituídos de alma, termos que são simples indicações de objectos e de movimentos, cuja associação constitui o que os psicólogos da linguagem designam pela expressão de linguagem prática : “Dê-me um cigarro!”, “Vou ao cinema”, etc. O verbo dar, por exemplo, enquanto designa o movimento simples de entregar, de passar para outro, corresponde mais ou menos a donner. “Eu dou o livro”. “Je donne le livre”. Em expressões como dar de sideu-se um acontecimento já o donner não serve. Fernando Saussure escolheu boi e boeuf. Poderia ter chegado à mesma conclusão comparando saudade e souvenir, por exemplo. O título do seu livro é amplamente ambicioso: Cours de Linguistique Général. Só que não há linguística geral, porque o pensamento, de que a língua é o domínio, não é uma matemática.

Toda a gente conhece a dificuldade que é falar uma língua, por exemplo, a francesa, pensando primeiro em português e fazendo, depois, a conversão mental da frase. Em psiquiatria regista-se o caso de uma pessoa esquecer completamente a língua mãe, mantendo, no entanto, a plena posse de outra língua que, anos atrás, aprendeu a falar correntemente. Isto mostra, ao mesmo tempo, que o que é possível ter por arbitrário é a relação entre a língua e o sangue. Neste sentido, observou Eduardo Sapir que a mesma língua pode ser falada por diferentes povos e o mesmo povo falar diferentes línguas.

A frase de Fernando Pessoa, tantas vezes referida, “Minha Pátria é a língua portuguesa” aparece frequentemente alterada em “A minha Pátria é a língua portuguesa”. Ele não poderia ter escrito a minha, com o artigo definido, porque também sua Pátria era a língua inglesa. Como se vê, não é intenção deste prefácio a apologia do nacionalismo, mas sim propor o verdadeiro universalismo que tem como imprescindível condição o reconhecimento das diferenças. É que cada língua é uma criação espiritual ou, como diria Fernando Pessoa, uma pátria espiritual. Se interpretarmos, com o estruturalismo, as línguas como mecanismos de fazer o pensamento, teremos ao mesmo tempo de lembrar o dizer de Leonardo Coimbra de que “a mecânica é o socorro de Deus enviado ao nada.” E então aprende-se a verdadeira relação da língua com o povo que a fala. O destino e a liberdade do povo é pela língua que se cumprem.

É de observar que, ao dizermos que uma língua é um mecanismo, não significa que a representemos pelo modelo das máquinas fabricadas pelo homem. O que são estas afinal? Uma imitação da natureza no que ela tem de exterior. Nelas, a força que as move actua por contacto. No ser vivo, mesmo que o entendamos como um mecanismo, a força actua por afinidade e por simpatia, por tal modo que a parte é homóloga do todo. Nos seres espirituais, aquela primeira relação inverte-se, é a máquina que cria o movimento. Compreenderemos isto se dissermos que o fim é a comunicação universal dos espíritos. Há dois planos que são difíceis à nossa comunicação : é o das inteligências inferiores à nossa e o das inteligências superiores à nossa. O pensamento é o movimento, que é como Álvaro Ribeiro interpreta La Pensée et le Mouvant de Bergson. A língua é uma criação espiritual criadora de pensamento.

A distância entre os homens não se vence pela uniformização linguística porque ela, a dar-se, seria o resultado de uma espécie de entropia bem mais perigosa do que a perda de energia física. Tudo quanto concorra à recuperação da energia espiritual pela valorização das línguas deve merecer a nossa melhor simpatia. Julgo ser esse o caso do livro que apresentamos.

 

António Telmo

 


[1] Por Outras Palavras: dicionário das frases idiomáticas mais usadas na língua portuguesa, recolha e organização de Ivone de Moura, Edições Ledo, Lisboa, 1995, pp. 5-8.