«OS MEUS PREFÁCIOS». 06
APRESENTAÇÃO DE MAPA METAFÍSICO DA EUROPA, DE CARLOS AURÉLIO[1]
Os mapas foram para os portugueses – chamavam-se então cartas geográficas – de uma importância muito grande durante os descobrimentos dos mares e das terras que ficam para além deles. Com um mapa do mundo eu posso, andando ou fazendo-me andar, ir até onde o finito toque o infinito. Claro que estou a falar de um mapa que considere todo o finito, isto é, que abranja, com o terrenal, também o sideral.
Mas há também outras espécies de mapas a que de boa mente se deve dar o nome de cartas transcendentais. Os mapas traçam-se, depois de se terem conhecido as terras, os mares ou os céus, com maior ou menor rigor, rigor que vai crescendo na medida em que se vão sabendo aplicar os segredos matemáticos e geométricos da topografia. Ora, parece que é possível viajar por outras terras, mares e sob outros céus, se deste mundo em que nos movemos a custo nos soubermos alhear para contemplar em espírito e verdade. Só assim se explica que haja, para lá dos mapas vulgares, outros em que se figura o desconhecido, ou se preferirdes, que haja roteiros que indiquem, para quem saiba interpretá-los, como é o mundo à luz do sol divino. Este mesmo mundo.
Um destes mapas ou roteiros, talvez o mais famoso, é o das sephiras. Os esoteristas, os falsos e os verdadeiros, conhecem-no pelo nome de árvore ou balança das sephiroth. É preferível designar as sephiroth, palavra hebraica, por sephiras, um neologismo que cabe aceitar porque, pela forma e pela matéria ou, como dizem os anti-aristotélicos, pelo significante e pelo significado, é analógico da palavra safiras.
Foi esta carta transcendental, este mapa do invisível que Carlos Aurélio sobrepôs ao mapa da Europa e assim por esse modo o pôde ver como um mapa metafísico.
Já o tinha feito com o mapa de Portugal, mas dessa vez através de telas pintadas interpretando o país de Norte a Sul como uma manifestação das sephiras.
Carlos Aurélio é um pintor de arte, nascido em Vila Viçosa, terra natal de Florbela Espanca, de Henrique Pousão e de Espiga Pinto. Viveu, como todos nós, uma fase ingénua, fase dos versos líricos e dos diários íntimos, com tentativas infantis no domínio das artes plásticas. Passada essa fase, descobriu Carlos Aurélio, na hora certa, que entre a figuração do visível e a sua desfiguração, entre a pintura fotográfica e a pintura desfocada e disforme, não há que escolher, porque, em boa verdade, a suprema arte de pintar consiste na transfiguração da natureza, na sua sobrenaturalização. Então, deixou para trás aquilo que até aí o embaíra e aparece-nos em Tomar, no Convento de Cristo, com uma série de imagens pintadas, compondo e recompondo a figura de Portugal pelos seus aspectos essenciais, série essa de imagens que se poderão caracterizar por este lema: exigência de realidade para tudo o que seja do domínio do espírito; de irrealidade para tudo o que seja do domínio da matéria, para que a ideia de Deus esteja presente num Portugal transfigurado.
O catálogo da exposição em Tomar, como o leitor pode ver em apêndice ao livro, tem, além das reproduções fotográficas dos quadros, explicações, pela palavra, de cada um deles e do seu conjunto, pondo em plena luz o mapa de Portugal como um mapa místico ou metafísico pela sua relação com as sephiras da Santa Cabala. A contemplação do autor torna-se prece. E é assim que surge, alguns anos depois, a realização, mais uma vez na forma de procissão ou de teoria, de uma exposição, mas agora o espírito do pintor imaginando na oração ensinada por Jesus Cristo aos seus discípulos e, através dos discípulos, a toda a humanidade. O que faz desta aventura no perigo uma experiência venturosa são as oito meditações que acompanham cada um dos quadros, em palavras que libertam as imagens da sua fixidez. Estas meditações constituem uma das obras primas da prosa portuguesa, digna de figurar numa antologia do nosso pensamento místico. Cumpre-se em Carlos Aurélio aquilo que é pouco comum entre os pintores, a de serem simultaneamente com a pintura artistas da palavra e do pensamento. Almada Negreiros e Lima de Freitas constituem, entre nós, os melhores exemplos de tão rara associação.
Enquanto estes dois mestres, companheiros na arte de pensar, se preocuparam com determinar as relações secretas da aritmética com a geometria, quarta e quinta ciências na escala pitagórica septenária, Carlos Aurélio, mais fascinado pela beleza do mundo terrestre, pelo mistério dos rios e dos mares, dos vales e das montanhas, das estepes e das florestas, prefere utilizar a sabedoria pitagórica, que bebeu na mesma fonte, pelo estudo metafísico da geografia, isto é, ligando a quarta e a quinta ciências à sexta e à sétima.
Voltamos assim ao ponto de partida desta apresentação. Mas uma surpresa nos espera. Pela magia do desenho, o mapa da Europa, olhado como por Fernando Pessoa e Luís de Camões do Oriente para o Ocidente, transforma-se numa bailarina e essa mesma bailarina, tocada pela magia de um alemão, transforma-se numa princesa coroada em que a coroa é Portugal. Por fim, eleva-se da terra ao céu como Nossa Senhora da Esperança.
A esperança na salvação do mundo pela Europa nada tem que ver, no espírito de Carlos Aurélio, com finanças ou economia. Como a ciência económica nada tem resolvido até agora, das duas uma: ou a ciência económica não é ciência ou aqueles que dedicaram toda a vida a estudá-la ainda não conseguiram penetrar nos seus misteriosos segredos, muito bem guardados pelo companheiro de Fausto. A surpresa a que me referi é que a salvação do mundo terá de ser procurada na literatura.
Verdadeiramente, só na Europa existe literatura, entendendo por literatura as criações literárias individuais no domínio do romance, do conto e da novela, dos vários géneros poéticos, do teatro e da filosofia, sobretudo da filosofia em que um homem, só perante o mundo tem a inteligência e a coragem de o pensar. A literatura nasceu na Grécia, como se sabe. Até aos gregos e longe deles, nunca houve nada de semelhante. A superioridade que, hoje, sobretudo por influência de René Guénon, se atribui ao Oriente pela metafísica é até explicada por ali não haver literatura e isto porque para o francês e seus sequazes, como para as demais correntes de orientalismo, o indivíduo não conta espiritualmente para nada. A negação do valor do que é individualidade espiritual coexiste, nessas correntes, com a negação de Deus pessoal, cuja ideia é completamente massacrada pela ideia do Nada (de um Nada que se supõe ser Tudo) como raiz do Universo. Quando tais negações estão pressupostas no facto de que Deus é aquilo de que nada se pode afirmar, nem sequer que é o Ser porque isso seria já uma afirmação, que é o indeterminado susceptível de receber por emanação todas as formas, porque uma e outra coisa seria fazer dele um ente finito, o que é contraditório, o que se está pondo no conceito é a ideia de matéria, tal como a deduziram Platão e Aristóteles. E há ainda outro pressuposto, o de que a realização espiritual do indivíduo só pode consumar-se pela autonegação. Neste sentido fala-se de abandono ou de entrega do ser ao nada, do que se poderá chamar um suicídio ontológico. A difusão do orientalismo, que beneficia das sucessivas concessões do catolicismo às doutrinas materialistas, tem contribuído em grande parte para o estado demencial que está ao fundo do túnel para o qual nos encaminhamos.
Carlos Aurélio pôs no frontispício do seu livro uma oração escrita por Fernando Pessoa, onde roga a Deus; “Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.” Claro que o poeta, não obstante a utilização que dele têm feito para combaterem as quatro religiões monoteístas, não pede a libertação do eu que divinamente se oculta e se manifesta em cada um de nós, mas de um eu envolto em escórias. Diferem os indivíduos uns dos outros pelo seu ser profundo e casto, porque Deus, que os criou, não se repete, não é um deus tecnológico, é simplesmente Deus. O nosso primeiro filósofo, Álvaro Ribeiro, aperfeiçoando a doutrina que trouxe do ensino de Leonardo Coimbra, onde este punha que o homem é um obreiro de um mundo a fazer, onde está obreiro pôs criador. O filósofo aristotélico, dizia ele, é o que pratica a contemplação, mas não para se dissolver em qualquer homogeneidade mística, mas para receber do mundo sobrenatural o sopro inspirador das palavras que fazem ver, das palavras criadoras de pensamento.
Também para Carlos Aurélio o que conta é o indivíduo que se ama a si mesmo, pois só assim, na condição de saber-se amar, poderá amar o próximo. Nos homens representativos, pela literatura, da Europa ordenada segundo a árvore das sephiras, o que é cada um deles no que têm de profundo e de verdadeiramente positivo realiza-se na mais significativa das personagens por eles criadas e imaginadas. Assim em Malcuth que corresponde à Rússia, Dostoiévski é o Príncipe Nikoláevitch Míchkin, o Idiota; em Iesod, que corresponde à Alemanha, Göethe é o Fausto; em Netzah, que corresponde à Escandinávia, Balzac é Serafito (o eu verídico do francês Balzac está realmente na Escandinávia, junto a Swedenborg); em Hod, que corresponde à Grécia, Homero é Ulisses; em Tifereth, que corresponde à França, Victor Hugo é Jean Valjean; em Hesed, que corresponde à Inglaterra, Shakespeare é Próspero, o rei taumaturgo; em Gueburah, que corresponde à Itália, Dante é Dante, pois na Divina Comédia Dante é uma criação de Dante; em Hochmah, que corresponde a Castela, Cervantes é D. Quixote; em Binah, que corresponde à Andaluzia, Ibn Arabî é Xerazade; finalmente e superiormente, em Kether, que corresponde a Portugal, Camões é Camões.
Eis o único caso em que o criador é a sua própria criação, em que, portanto, o eu exterior reflecte inteiramente o eu profundo ou como se o mesmo tivesse duas faces.
Esta correspondência de Portugal com a mais alta das sephiras, com a Coroa, que é como em português se diz Kether, não é originalmente do autor do Mapa Metafísico da Europa. Tem por base a figura da Europa na forma da Virgem Coroada tal como foi traçada pelo alemão Heinrich Bünting (séc. XVI). Se fosse um português que tivesse posto Portugal como coroa da Europa, a coisa ia de si. Mas ter sido um alemão dá-nos alguma esperança.
A primeira pessoa que me falou de Carlos Aurélio foi Luís Paixão, o nosso primeiro arquitecto, o arquitecto da filosofia portuguesa. Indicou-mo como alguém que devíamos receber entre nós na tertúlia que, em Estremoz, nos reunia todos os sábados pela manhã. Foi, no entanto o acaso que o trouxe a conversar comigo.
Falámos das imagens préhipnóticas, de que ele tinha alguma experiência. Mais tarde, seria no domínio do sonho que o seu espírito viveria no seu elemento. Desde as visões premonitórias de acontecimentos até àquelas em que dir-se-ia Deus estar presente, muita verdade tem passado pela alma do nosso escritor enquanto dorme. Não digo que alguma vez tenha atingido o estado de alma de que nos fala Salomão: “Durmo, sed cor meum vigilat”. Todavia, durante a noite, o seu espírito é habitado por imagens tão significativas que podemos dizer delas que são metáforas poéticas, daquelas que somente visitam os grandes espíritos.
Nesse mesmo dia em que o conheci, pediu-me que fosse com ele a sua casa ver uns quadros que tinha pintado, pois gostaria de saber a minha opinião sobre eles. Estava no início de uma vida dedicada à arte do desenho e da cor e necessitava de aplausos. Limitei-me, porém, a dizer-lhe: “Gostaria muito de saber o que tem feito de si como artista até agora.”
O que ele fez de si como artista até hoje (já lá vão vinte anos) deve ser avaliado pelas fases progressivas da sua pintura, pois nele são indissociáveis, como o valor de X e de Y numa função, a arte e a vida. Esta relação está sempre presente em tudo quanto pensa, imagina ou faz . E vê-se, acompanhando os momentos por que tem passado o que pinta, acompanhando, isto é, compreendendo, que Carlos Aurélio se vai libertando da dependência de si próprio, sem deixar de ser leal ao eu que pelo nascimento lhe foi confiado.
Há quem procure dirigir, enquanto dorme, os próprios sonhos, como é o caso de António Cândido Franco, o insigne autor da Arte de Sonhar. Quando disse atrás que é no domínio do sonho que o espírito do Carlos Aurélio vive no seu elemento, não empreguei, como se viu, a palavra sonho figurativamente. Falava mesmo de sonhos, daqueles sonhos que se revelam na luz interior de quem dorme, luz tão real como a luz física, mas sem sombras. Carlos Aurélio não procura dirigir os sonhos, a não ser que se entenda por dirigir criar um estado de alma durante a vigília que pela sua religiosidade prática seja propícia à descida dos anjos.
António Telmo