«OS MEUS PREFÁCIOS». 03
No dia do aniversário natalício de Dalila Pereira da Costa, amiga com quem António Telmo manteve amplo convívio espiritual (bem patente nas cartas que a escritora portuense lhe endereçou, e que, com transcrição, comentário e anotações de Rui Lopo, serão publicadas no suplemento télmico do próximo número duplo da revista de cultura libertária A IDEIA), recuperamos o escrito posfacial que o filósofo da razão poética dedicou a um dos livros porventura menos conhecidos de Dalila, Mensagens do Anjo da Aurora, que contou também com um prefácio de António Cândido Franco. A tábua de Gregório Lopes a que Telmo se refere é o esplendoroso painel onde se representa Nossa Senhora da Misericórdia, hoje à guarda do Museu Municipal de Sesimbra, e patente no núcleo museológico da Capela do Espírito Santo dos Mareantes. Em Março de 1984, sobre e perante este quadro, então na Santa Casa da Misericórdia de Sesimbra, proferiu António Telmo uma notável conferência, cuja súmula, publicada por António Reis Marques, do projecto António Telmo. Vida e Obra, na edição de Março de 1984 de O Sesimbrense, viria a ser arquivada em Sesimbra, o lugar onde se não morre, livro póstumo editado em 2011 pela Câmara Municipal de Sesimbra. No espólio de António Telmo encontra-se uma gravação da referida conferência, de que o nosso projecto oportunamente se irá ocupar.
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POSFÁCIO A MENSAGENS DO ANJO DA AURORA, DE DALILA PEREIRA DA COSTA[1]
Tenho diante de mim, enquanto escrevo esta breve introdução, o quadro de Gregório Lopes onde o pintor representou a aurora na forma de Nossa Senhora da Misericórdia com o seu largo manto azul escuro aberto como as asas de um anjo. Representou a aurora como Virgem do Manto ou a Virgem Nossa Senhora como a aurora. Escrevo aurora com letra inicial minúscula para que se veja bem que é a aurora mesma e não alegoria, a dos dedos róseos dos cantares de Homero. A aurora dá que pensar e raros são os que, como a Dalila, vêm nela o Anjo.
A luz manifesta-se a oriente e da negridão da noite surge primeiro o branco da alvorada e depois a aurora rubra mãe do ouro que é o sol. Ali, no horizonte a nascente, se pintam as três fases alquímicas de fabricação do ouro: a obra ao negro, a obra ao branco e a obra ao vermelho. Mas Nossa Senhora, tal como a pintou há cinco séculos Gregório Lopes, está diante de mim para que eu não me esqueça que ela é o essencial sem o qual a natureza não teria qualquer sentido. Ela não recebe o sentido da natureza.
Sobre a cabeça inclinada levemente para a direita tem a coroa de oiro e áurea é a auréola ou a aura que repete na forma o oval do seu rosto. E numa ondulante fita, em cima e de lado a lado do quadro está escrito: AB INFANTIA MEA CREVIT MECUM MISERACIO ET AB UTERE MATRIS MEAE EGRESSA EST MECUM.
O leitor não estranhou decerto que tenham vindo a aparecer em torno da Ideia que estamos contemplando tantas palavras em que está presente a raiz AUR: aurora, áureo, auréola, aurum. Se lhes juntarmos a palavra aures que é como em latim se dizem os ouvidos, ao sabermos que aur é a palavra hebraica para luz (sim senhor, senhores comparativistas), pasmaremos com o sublime ensino da língua que dá a luz da origem como audível, mais do que como visível. Sabia-o muito bem Goethe que, no início do segundo Fausto, põe este herói do conhecimento, de súbito acordado pela luz da manhã, a exclamar perante o sol que nasce: “Que estrondo!” Numa das suas conversas com Eckerman, veio a explicar que o maravilhoso som ouvido o ouviu por ter contemplado muitas e muitas vezes o nascer do Sol, por ter estado muitas vezes voltado para o Oriente, que, na palavra, é marcado pela mesma raiz AUR.
Também nós deveríamos levantar-nos cedo e procurar um lugar de onde pudéssemos assistir à formação da aurora. Esta seria a melhor introdução ao livro de Dalila. Pelo menos ficaríamos a fazer uma ideia do que possam ser as Mensagens do Anjo que nos dispusemos a ler.
António Telmo