«OS MEUS PREFÁCIOS». 02

09-02-2014 13:09

[Café “A Brasileira do Rossio”]

 
 

INTRODUÇÃO A DIONISO EM CRETA E OUTROS ENSAIOS, DE EUDORO DE SOUSA[1]

 

Julgo lembrar-me de ter ouvido ao Eudoro de Sousa dizer que os livros verdadeiramente dignos de atenção se devem ler do fim para o princípio, que é como quem diz, da direita para a esquerda ou da luz para a sombra… Amava destroçar os lugares-comuns, desmontar o que é evidente. «O meu nome, Eudoro, não diz, como parece sugerir a etimologia, que eu sou uma bela dádiva dos deuses ao mundo; o que ele quer dizer, e pela mesma etimologia, é que eu sou uma boa prenda.» 

Ler do fim para o princípio é como Aristóteles procedia perante o grande livro da natureza. Ensinou, como se sabe, que a melhor das causas é a final. Terá alguém reparado que esta ideia se exprime, antes de tudo o mais, no seu nome: Aristóteles? Claro que ainda há, de acordo com a etimologia do nome, uma ideia mais alta: a do perfeito iniciado.

Obedecendo à sugestão, e tomando à letra o que ela nos diz, se começarmos a ler o livro do próprio Eudoro pelas últimas linhas, ali depararemos, com efeito, na conclusão o princípio regulador do imenso e lúcido silogismo que é todo o Dioniso em Creta. Essas linhas são, como pode ver-se, as seguintes: «Os comentadores de Platão, que a todo o passo citavam livros órficos, e para os quais Orfeu era o Téologo-Poeta-Músico-Hierofante, não podiam chegar à síntese, porque a síntese é irrealizável no sentido da tese ou da antítese. Mas Orfeu era um símbolo do anseio por realizá-la. Estaria ela já realizada, ou a caminho de realização, no Cristianismo? Uma pedra conservada no museu de Berlim ostenta, sob um Cristo crucificado, esta inscrição: ORPHEOS BAKKIKOS.»

Nos termos do autor do que citamos, a tese era a imanência de uma religião cosmobiológica, a antítese foi a transcendência do «deísmo filosófico ou metafísico». E escreve: «Os neoplatónicos, comentando Platão, conheciam a primeira pelos cultos de mistério e a segunda pela metafísica platónico-aristotélica. Plotino não soubera, nem quisera tentar a síntese.»

Quem, pois, realizou a síntese foi o Cristianismo, um Cristianismo de «um Cristo quase pagão», como escreveu Leonardo Coimbra, um deus que dança: Orfeu Dionisíaco. Como entender, porém, a legenda sob a imagem do Crucificado?

Eudoro de Sousa não cessa de interrogar e de se interrogar sobre o que terá sido o segredo nunca revelado dos mistérios gregos. «Culto verdadeiro», escreve ele, «e, por conseguinte, religião autêntica, era ainda e sempre a dos mistérios.» Tudo leva a suspeitar que, no espírito do grande helenista, a Missa católica seja a forma revelada dos mistérios de Elêusis, onde a espiga pode muito bem ter representado o que na Missa é o pão da Eucaristia e, se, em vez de Elêusis, pusermos os mistérios de Dioniso, logo a analogia se completa pelo vinho. Todavia, para que seja como se não diz mas se intui em Eudoro de Sousa, necessário se torna que Cristo não seja só o Crucificado, mas o deus, como Baco ou Dioniso, que ressuscitou da morte.

Eudoro não o diz. Perante o enigma do que seriam in nuce os mistérios gregos, enigma insolúvel pelo método dito científico de indução a partir do pouco que saiu para fora, o filólogo português segue na peugada dos helenistas alemães para lhes passar adiante com a soberana intuição de que ali, onde quer que no templo se celebrem tais mistérios, algo se passará que pela música e pela dança realize as núpcias do Céu e da Terra, do transcendente apolíneo e do imanente dionisíaco. Todavia, para que tal se dê, impõe-se que pelo neófito o deus antes desça aos infernos. De novo o cristianismo projecta a sua luz nas sombras do passado.

Introdução é, como a palavra o pode sugerir, a abertura de uma porta que dê para um caminho pelo labirinto da discursividade. É, todavia, verdade, que o que vimos propondo como introdução a Dioniso em Creta está longe de estar explícito. Eudoro de Sousa como que não se arrisca a dizer claramente o que pensa. Limita-se a apontar, a indicar, como quando diz, por exemplo: «Historiável, na Grécia, é só uma religião que, saturada de imanência e apelando para a transcendência, mas não podendo ‘esperar o inesperado’, só o achará quando chegar a hora da Revelação. Para as almas mais abertas aos quatro ventos do espírito, não teria sido a impossibilidade de realizar a pressentida coincidência dos opostos, uma eficientíssima praeparatio evangelica?» Ao escrever isto não terá Eudoro de Sousa em mente São Paulo?

A religião católica tem por base não um mito, mas um evento histórico. É o que geralmente se apresenta como garantia de veracidade.

Claro que poder-se-ia responder, recorrendo a Aristóteles, que a poesia é mais verdadeira do que a história. Eudoro de Sousa, neste ponto, diria certamente que, sendo na Grécia de Homero o mito a própria poesia, só quando o mito é a matéria que busca no rito a própria forma é que a verdade está garantida. Isto aconteceu, antes de Homero, no mundo minoico e persistirá nos mistérios para cá de Homero, mas só com o Cristianismo se realizará perfeitamente. Porquanto o Cristianismo será a única religião em que o mito é história e a história é mito ou, noutros termos, é a religião em que o mito do deus báquico que ressuscita da morte se realiza historicamente e é depois presente, e não apenas memorado, na Missa cristã.

A revista brasileira Humanidades dedica todo o quinquagésimo número, como se do seu jubileu se tratasse, a Eudoro de Sousa, ostentando na capa o seguinte elucidativo subtítulo: Presença da GRÉCIA, Prémio Eudoro de Sousa. Apenas um português colabora na revista. Trata-se do filósofo hermeneuta Joaquim Domingues, que foi, aliás, quem estabeleceu a bibliografia completa do grande helenista. Mostrando a íntima relação entre O Culto e a Cultura no pensamento de Eudoro de Sousa, lança simultaneamente a sugestão, documentando e raciocinando, que procurei desenvolver nas linhas anteriores. Sem a sua sugestão, tudo ficaria encerrado no círculo fechado, conquanto vastíssimo, da pesquisa pela erudição.

A Joaquim Domingues devo o convite para escrever esta introdução. Sugeriu o meu nome ao grande amigo da filosofia portuguesa e, também ele, filósofo português António Brás Teixeira, fazendo-o, julgo eu, por saber que a minha vida intelectual esteve, no início e no fim, intimamente associada ao magistério pessoal de Eudoro de Sousa. Fê-lo talvez pensando que a introdução a um livro, além de uma ou de outra chave de abertura no sentido do pensamento, deve dar uma ideia bem pessoal do autor, sem o que a relação do leitor com o livro corre o risco de não ser de «razão animada».

Fui discípulo de Eudoro de Sousa nos meus anos moços, por volta dos vinte. Veio isto em consequência de eu ter sido recebido no círculo da filosofia portuguesa, onde pontificavam do natural para o sobrenatural Álvaro Ribeiro e José Marinho. Na fantasia do adolescente, Álvaro correspondia a Aristóteles e Marinho a Platão. Eudoro, até pela fisionomia, lembrava a figura espiritual de Sócrates. Um mês depois de lhe ter sido confiado, deu-se um acontecimento que foi o meu primeiro encontro com o espanto e que ainda hoje se repercute em mim como um aviso e um chamamento.

Todos quantos, ainda imaturos, leram René Guénon sabem como os envolveu e subjugou uma estranha convicção de que a sabedoria do metafísico francês, expressa num tom infalível, passou para eles, transmitindo-lhes um sentimento de superioridade sobre os outros que chega a roçar a idiotia. Foi o que se deu comigo. Eu viera de completar a leitura em segredo de O Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo e dirigi-me para a Brasileira do Rossio, café hoje transformado em banco, onde encontrei o Eudoro de Sousa. Eu estava cheio de mim e, por conseguinte, oco.

Pedi delicadamente licença para me sentar à sua mesa. Não fiz nem disse nada, julgava eu, que pudesse revelar o meu baixo estado de espírito. De repente, ó espanto!, interpelou-me com violência: «– Olha lá! Tu estás parvo? És um rapaz simpático e todos nós te temos por muito inteligente. Queres dar cabo de ti?»

A minha alma deu uma volta sobre si mesma e varri o demónio da auto-suficiência. Varri-o até hoje. Ele viu isso e, olhando-me em silêncio, pôs-se depois a conversar como se nada se tivesse passado.

Contarei ainda outro episódio bem significativo da sua superior personalidade que se deu em Brasília, para onde, vinte anos mais tarde, ele me chamou como colaborador no Centro de Estudos Clássicos, que dirigia.

Eudoro de Sousa era um professor extraordinário. Durante o ano dava uma meia dúzia de aulas. Acabavam todas com os ouvintes de pé batendo palmas. O seu estilo de ensinar era espantoso. Não conheci nada de igual em toda a minha vida de aluno e de professor.

O episódio a que me referi passou-se numa aula sobre o Egipto. O anfiteatro onde decorreu a aula estava repleto de alunos e de professores. Eudoro de Sousa caminhava de extremo a extremo da parte inferior do anfiteatro com movimentos que lembravam os de uma fera. De repente parou e começou a falar. Falava com os próprios silêncios que fazia entre as frases. Em dado momento, referindo-se às pirâmides, disse que elas eram o resultado da criação religiosa de um povo. Lá em cima, na última fila, junto ao último degrau da escada de acesso, um indivíduo, em tom insolente, interrompeu-o vociferando que as pirâmides tinham sido feitas pelos escravos subjugados pelos senhores do dinheiro e do poder. A resposta de Eudoro de Sousa foi memorável. Começou a subir os degraus que levavam até ao homem. Em cada degrau parava e dizia o nome de um egiptólogo. Subiu assim toda a escada. O silêncio era a expressão da enorme expectativa de toda a assistência. Quando chegou em frente do homem, depois de ter mencionado alemães, ingleses, russos, franceses, olhou-o cara a cara com os seus grandes olhos socráticos, dizendo sílaba a sílaba: «– Todos estes sábios ensinam que as pirâmides foram uma obra de devoção de todo um povo.»

Desceu lentamente a escada, bebeu um golo de água e continuou tranquilamente a falar. A assistência interrompeu-o para o aplaudir de pé. Eudoro de Sousa foi para o Brasil porque em Portugal não o deixaram ensinar.

Hoje, ali, nos meios culturais, bem conhecido e muito admirado, é aqui, nos meios universitários, vagamente referido, quando não é totalmente ignorado. A edição de Dioniso em Creta pela Imprensa Nacional, seguindo-se à de Origem da Poesia e da Mitologia e Outros Ensaios e de Horizonte e Complementaridade e de Sempre o mesmo acerca do mesmo, também pela Imprensa Nacional, pode ser que torne mais popular, entre nós, o estudo da Grécia, através de um homem nado e criado «na terra mais antifilosófica do planeta».      

 

António Telmo



[1] Eudoro de Sousa, Dioniso em Creta e outros escritos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, pp. 7 a 11.