OBRAS COMPLETAS: UMA GRANDE CELEBRAÇÃO TÉLMICA NO PASSADO DOMINGO, NA CASA DO FAUNO, EM SINTRA
Foto-reportagem de Cristina Vieira
Quando, em 1917, foi publicado, o romance Húmus, de Raul Brandão, passou despercebido. O mesmo, de alguma forma, aconteceu com Arte Poética, de António Telmo, o seu livro de estreia, de 1963, que conheceu recentemente a sua terceira edição, em conjunto com a Gramática Secreta da Língua Portuguesa, no âmbito das Obras Completas do filósofo. Arte Poética, defendendo uma literatura firmada no pensamento, surgiu ao arrepio das correntes doutrinárias e estéticas então em voga na Europa e entre nós. Nesse mesmo ano de 1963, Eduardo Prado Coelho editava também o seu primeiro livro. Hoje, as suas obras não encontram um editor que as publique. Para tudo isto e para muito mais chamando a atenção, e como que sublinhando a perenidade e o futurismo da obra télmica, Miguel Real ofereceu na tarde do passado domingo, em Sintra, uma ampla panorâmica da época em que o livro inaugural de Telmo saiu a lume, na sessão que a Zéfiro e a Casa do Fauno dedicaram aos II e III volumes das Obras Completas de António Telmo.
A António Carlos Carvalho coube, como o próprio sublinhou, a árdua e espinhosa tarefa de apresentar a Gramática Secreta da Língua Portuguesa. Introduzindo, com proverbial humor, as principais teses do livro, como a dedução sefirótica dos fonemas da língua pátria segundo a árvore da kabbalah, tendente à demonstração de que o Português é uma língua sagrada, ou o criptocabalismo da pedagogia de João de Deus e da sua Cartilha Maternal ou Arte de Leitura, gizada em conformidade com os preceitos do Sepher Yetzirah ou Livro da Formação, António Carlos Carvalho evocou ainda Raphael Draï, filósofo francês de origem judaica recentemente desaparecido, cujas convergências com a obra de Telmo, mormente nos domínios da linguística e da filologia, são evidentes.
Após um breve intervalo, a sessão foi retomada com a intervenção mais aguardada da tarde. A Professora Maria Helena Carvalho dos Santos, prima direita de António Telmo e eminente especialista de Cultura Portuguesa Contemporânea e do período iluminista, que recentemente aderiu ao nosso Projecto, evocou o seu tio Teófilo Carvalho dos Santos, convocando a memória de alguns episódios familiares marcantes. E, como que assinalando, em modo de compromisso, a sua pertença ao Projecto António Telmo. Vida e Obra, Maria Helena Carvalho dos Santos leu, a terminar a sua alocução, um poema da sua autoria, belo e tocante.
José Madeira, tal como António Telmo um camonista que voga contra a corrente -- é autor do livro Camões Contra a Expansão e o Império - Os Lusíadas como anti-epopeia (2000) --, apresentou Luis de Camões e o Segredo d'Os Lusíadas, assinalando o bem fundado de várias leituras propostas por Telmo. Foi um diálogo muito fecundo e estimulante, travado entre duas perspectivas radicalmente diferentes, e operando em diferentes níveis de interpretação, mas que podem convergir, porventura surpreendentemente, em diversos pontos.
Rui Lopo não referiu expressamente o texto das Páginas Autobiográficas de onde retirou o mote, mas perspectivar a obra de Telmo pela linhagem de Bruno e de Agostinho é algo que o filósofo consente e sugere quando, nas "Páginas Ibero-Americanas", nos diz que a sua escola é a de Sampaio Bruno e de Agostinho da Silva. António Telmo não poderia ter escrito uma autobiografia porque a vida não era para si algo de encerrado, disse Rui Lopo, além de enfatizar a poesia e a liberdade entre as marcas distintivas desta corrente de pensamento que une filósofos da matéria, da terra, do mundo e da vida quotidiana.
O público, que acorreu em bom número à Casa do Fauno, não arredou pé desta sessão extensa e intensa, numa época em que, como Pedro Martins, logo no início, fez questão de salientar, a obra de António Telmo está de volta às livrarias com uma pujança que há muito se não via, graças ao trabalho da Zéfiro e do seu editor, Alexandre Gabriel, a quem aqui renovamos os nossos agradecimentos.