INÉDITOS. 72
Consiste a História Oculta de Portugal de António Telmo num conjunto de escritos, alguns deles fragmentários, que se constituiriam como materiais para uma primeira versão da História Secreta de Portugal. Grande parte desses escritos – os que relevam pelas diferenças que revelam perante a obra saída a lume em 1977 – constituem a terceira e última parte do Volume VIII das Obras Completas de António Telmo, História Oculta de Portugal precedida de No meio do caminho da vida e Os meus prefácios, que será lançado no próximo dia 20, na Escola Superior de Medicina Tradicional Chinesa, em Lisboa, conjuntamente com António Telmo, Literatura e Iniciação – Esboço para uma cartografia sobre pedra cúbica, de Risoleta C. Pinto Pedro, segundo título da Colecção Thomé Nathanael – Estudos Sobre António Telmo.
Da História Oculta de Portugal antecipamos hoje aos leitores mais um dos textos que a integram.
A inveja como agente da degenerescência espiritual[1]
As maiores vítimas da inveja são os filósofos, porque a filosofia é uma actividade distinta e onde o valor do homem como indivíduo se afirma sobre os outros valores. Só o indivíduo pensa. Se eu penso, com ilusória boa vontade, admirar um Heidegger, longe na Alemanha, ou um Plotino, longe no tempo, não suporto que o meu vizinho seja um filósofo admirado. Não o posso ver, invejo-o. A inveja, que é coisa da vista, precisa de uma certa distância. É um sofrimento, mas um sofrimento que actua negativamente sobre o objecto que o produz. Se este está longe, mal visível ou invisível, a distância o guarda do turvo olhar. Deus foi morto em Cristo, porque em Cristo se tornou visível. Consiste a inveja, como a língua o diz, em não se poder ver a imagem que nos fascina. Mas para olhar e lançar a energia turva da vontade é precisa uma certa distância, nem mais nem menos, a do meu vizinho, quer se chame Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro ou José Marinho, da rua de Portugal.
A clandestinidade da filosofia seria o modo de evitar a acção nefasta da inveja; fingir-se nada para não ser reduzido a nada e à absoluta inexistência. Mas o filósofo não é legião nem turba. É um indivíduo. Não pode ser filósofo sem ser indivíduo, isto é, indivisível, sustido em si, distinto. O distinto é o que se vê. O igual é o limite para que tende a anulação da vida pelo espírito, a anulação da evidência. É talvez, por isso, que a ave de Minerva, como escreveu Hegel, só voa ao anoitecer, que é como quem diz: a filosofia só aparece no termo de um ciclo. É a evidência do que, até então, estava oculto e oculto actuou e moveu os homens e sua história. Vem finalmente dizer como é, quando tudo parecia ganho contra ela, quando a igualdade dos seres parecia realizada pela anulação dos espíritos, único caminho possível de realizar-se.
Pondere-se este facto simples: de um lado uma língua, a portuguesa, como já se viu, que é o próprio pensamento na complexidade enorme das suas articulações secretas; do outro um povo que ainda não deixou de a falar e que enquanto é apenas memória lhe está ligado em substância. Mas o plano do mundo subtil onde se exerce o acto comum de pensar define-se pela mediocridade das ideias, pela incapacidade de ligar duas ideias e muito menos de deduzir uma terceira. Como é isto possível?
O mesmo fenómeno foi verificado pelos linguistas americanos (um Sapir, um Boas, um Lee-Whorf) que têm estudado as línguas dos povos selvagens. Povos completamente estupidificados falam idiomas que são complicadíssimos sistemas de compreensão do mundo. Como é isto possível?
A hipótese de Sapir é que nenhuma relação substancial existe entre a língua e o povo. Então, quem pensa na língua? Os leonardinos concluíram daqui a existência de uma filosofia portuguesa. Mas não é isto contraditório com o que se disse há pouco, que só o indivíduo pensa? A isto respondem os leonardinos que precisamente porque os indivíduos tendem, simultaneamente com o movimento degenerescente do povo, a não serem indivíduos deixam de ser capazes de pensar pelas categorias da própria língua e apenas conservam os automatismos mais simples e que menos apelo fazem ao esforço de reflexão. Claro que se pode pensar noutra língua que não seja a nossa. Mais tarde ou mais cedo, porém, se homens deixam de pensar a língua que falam, esta acabará por morrer. Restará apenas o escrito. E por isso, a inveja tentará aniquilar também o que está escrito, na sua obra de instauração da morte.
António Telmo
[1] N. do O. – O título é da nossa responsabilidade, mas baseia-se, reproduzindo-a, numa inscrição manuscrita do filósofo, em página autónoma do caderno de apontamentos.