INÉDITOS. 70
Sobre a Pátria[1]
Para mim a Pátria não é um Estado definitivo, que por vezes se corrompe, por vezes se aperfeiçoa, assim como se fosse uma espécie de modelo fixo onde devem estar bem comidos, bem empregados e, na melhor das hipóteses, bem casados. Esta ideia de um país operoso e bem comportado, que aumenta pelo trabalho a riqueza, que dispõe de uma cultura (poetas, romancistas, pintores, filósofos), que terá, porventura, encontrado a melhor forma de economia, que vai todos os domingos à missa e, se não vai à missa, vai ao futebol, e tudo o mais que tão bem conheceis, não é melhor ideia do que aquela que nega uma cultura própria, que nega a propriedade da Pátria, a subordina a um único factor – o trabalho – e a dissolve num Estado mais vasto, o de toda a humanidade. As duas ideias não prestam porque não são ideias, são expressões do desejo de ser feliz. Num caso como noutro o que se pretende é a quietação, a tranquilidade, o bem estar, nem que, para isso, tenhamos de sacrificar, como na verdade sacrificamos, não a liberdade, como em geral se diz nada dizendo, mas o próprio ser, sem o qual existimos como se fôssemos e não sendo nada somos nada. “O fim do homem não é ser feliz; é ajudar a evolução da natureza.” Como pode o homem saber isto se se esqueceu de si e definitivamente ignora que é um intermediário entre os mundos inferiores e os mundos superiores? De tal modo ignora que temo, ao escrevê-lo, despertar o encolher de ombros do leitor.
Tu, homem operoso no domínio do músculo ou do intelecto, que julgas contribuir, trabalhando, para um mundo melhor, diz-me porque entras em pânico sempre que a ideia da morte se torna suficientemente intensa, quer a impressão que a cause seja um tremor de terra, uma guerra civil, uma doença grave ou a solidão nos baixos caminhos da noite? Se és capaz de, com um grupo de amigos, consultar os espíritos à volta de uma mesa de três pés, terás porém a coragem de o fazer sozinho num cemitério? Afastas a ideia da morte e julgas que não morrerás nunca. A morte para ti é uma ideia matemática. O que tu receias é o teu próprio ser, esse mistério que trazes contigo, que, por vezes, tornas consciente, mas que logo afastas para “poderes ser feliz”.
Então, não me venhas falar de política, de evolução da humanidade porque o que no fundo queres é a tua tranquilidadezinha na convicção de que isto – o mundo dos homens – continuará sempre como o encontraste ao nascer, pelos séculos dos séculos, com pior ou melhor distribuição da riqueza.
Claro que para quem pense que a humanidade evolui para que o mundo evolua, dentro de um grande e misterioso plano em que todo o Universo colabora, a Pátria aparece como um elemento criado para ajudar a evolução da humanidade. Quando um homem como Agostinho da Silva diz que Portugal é um dos nomes de Deus e D. Manuel Primeiro pede ao Papa que reconheça o Arcanjo São Miguel como o Anjo Portugal é então que a mais perfeita e verídica ideia de Pátria se encontra nestes dois espíritos régios e se, no primeiro, pode ser dada por uma ideia poética, no segundo, foi um acto de profundas consequências políticas.
Na casa de Portugal, antes da conversão obrigatória ao cristianismo, não havia uma Pá[tria.]
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Não há pátria, há Portugal.
É o não haver pátria nesta terra que explica a sua história, a sua política, a sua cultura.
De início e até D. Manuel Primeiro, houve, não uma, mas três pátrias: a judaica, a muçulmana e a cristã. Se queremos falar com propriedade, por “pátria” há-de entender-se uma comunidade referida a pais comuns ou a antepassados comuns. Moisés, Maomet e Cristo tivera, entre nós, desde o início do que se chama nacionalidade as suas três “nações”. Não era apenas uma diferença de religião. Cada Nação tinha tribunais próprios, administração própria, costumes próprios, representantes seus junto do Rei das três nações. Embora historiadores como o português Paulo Mereia e o espanhol Américo Castro tenham mostrado o que foi Portugal até à obrigatoriedade da conversão ao cristianismo de todos os portugueses, o facto é que com a vitória da casta cristã a história passou a ser contada como se fôssemos “ab initio” um povo de Cristo. O país estava cheio de sinagogas e de mesquitas e não só de igrejas. A grande maioria das sinagogas foram destruídas e as mesquitas transformadas em igrejas. Depois, judeus e mouros que não tiveram a coragem de partir, cruzaram-se com os cristãos, fizeram-se “mais papistas que o papa”, “vestiram a pele do lobo”, ou o “hábito do monge”, ensinaram os filhos a ser hipócritas.
D. Manuel Primeiro, consciente talvez de que o sentimento da Pátria estava para sempre aniquilado, pediu ao Papa que reconhecesse no Arcanjo São Miguel o Anjo Portugal. É aqui que Portugal se transcendentaliza, o que leva o poeta Fernando Pessoa a chamar-lhe São Portugal e Agostinho da Silva a tê-lo por um dos nomes de Deus.
Eis pois que nunca houve pátria, mas pátrias. Eis que passa com D. Manuel Primeiro a haver Portugal.
No portal sul dos Jerónimos, o Arcanjo São Miguel está no alto de uma linha vertical representativa do eixo do mundo, tendo em baixo primeiro Santa Maria e depois o Infante. Há aqui a adesão ao Mistério essencial, o Mistério do Espírito Santo, que se revelará inteiramente aos homens através de um Imperador que é o Infante ou a Criança. Os católicos gostarão de verificar como em Fátima às três crianças apareceu Santa Maria, antes anunciada pelo Anjo Portugal, mas já nos Açores, onde estão as ilhas de São Miguel, de Santa Maria e a Terceira (também chamada do Menino Cristo) se celebrava o culto do Espírito Santo.
Claro que esta ideia de uma criança ser o Imperador do Mundo, de ser ela a soltar os presos e a distribuir o pão por todos, faz “encolher os ombros a políticos e a sociólogos e até a religiosos demasiado ciosos da sua fé política. É um sonho bom para ser sonhado por poetas como aconteceu ao Alberto Caeiro a quem uma criança, a Criança Divina, ensinou a pensar, sentir e viver.
Oremos! Quer dizer, reflictamos!
Todos nós nascemos não para sermos os homens que somos; o de que a criança é embrião é outra coisa, mas a “educação”, não só do Estado mas também essa, transforma esse embrião de poder e de conhecimento no pobre ser frágil do adulto, num ser poltrão, vaidoso, superficial, movendo-se pelas impressões exteriores como um mecanismo, completamente dependente dos outros. Pelo contrário, se a criança recebesse o ensino que convém, aquele que soubesse tornar adulta a sua essência, teríamos nela finalmente o ser que em si tem o seu princípio, de que o Infante é o mais alto símbolo.
É evidente que quando se fala no reino da Criança, não é da criança que se fala tal como a vêem os adultos, um ser imaginoso, criativo, ignorante ainda da realidade, que confunde a lua com uma fada (assim ao jeito dos contos de Afonso Lopes Vieira, ridicularizados por Pessoa, ou de Sophia de Mello Breyner, consagrados nas nossas selectas). A criança é o ser que cresce e o Infante é o ser que não fala. A criança é, porém, desviada no seu crescimento e ensinada a falar pelos adultos que nas palavras a que a habituam transmitem a sua “representação do mundo”. Um dos aspectos dessa representação está em não ver a criança como uma potência, mas como uma deficiência. Claro que a lua não é uma fada, nem a criança pensa que seja uma fada, tal como esta se representa na cabeça dos adultos. Mas que a lua é qualquer coisa que os adultos ignoram isso se o não sabe a criança, tem em si a virtualidade de o saber.
É possível que, por circunstâncias excepcionais, alguns tenham escapado ao destruir de todas as suas virtualidades de conhecimento e de poder. E que, num país sem pátria, mas com um “nome” encontrem o segredo de fazer o que não pode ser dito. Nem a todos pode já ser comunicado o Graal e o Galo que o detém no Porto de onde sempre se parte, até quando se perdeu já o gosto de “viajar”.
O Graal? O Galo? Mas porque é que o Infante não fala, tal como o nosso Pai Rosacruz dos sonetos de Fernando Pessoa?
Entretanto, reflectindo, oremos.
António Telmo
[1] Título da responsabilidade do editor.