INÉDITOS. 59
Darwin[1]
Comprei a Autobiografia de Carlos Darwin em tradução portuguesa, cuja capa é totalmente coberta pela reprodução de um retrato do autobiografado. Observei, elucidado, que as arcadas supraciliares do retratado, poderiam ter-lhe sugerido ao espelho as do seu “antropopiteco” original, antepassado, segundo ele, de todos nós, incluindo a linda cara da minha mulher, hoje como nos seus anos jovens. Formam uma plataforma por sobre os olhos.
Fui bisbilhotar numa Enciclopédia. Aí aparecia de frente com dois olhos vivos muito pertos um ao outro, proximidade que veio confirmar as minhas suspeitas.
O livro veio abrir caminho a outra possibilidade, a de que a ideia de atribuir ao homem a vergonhosa origem animaloide lhe tenha vindo, não por via científica (isso veio depois a documentar), mas por causa de lhe ser insuportável outra ideia, a de ter relações sexuais com a própria mãe, a quem adorava tanto que ao falar da mulher com quem casou só vê nela o facto de ser mãe!
“Todos vós conheceis bem a vossa Mãe” (escreve para os filhos), e sabem como ela foi, uma santa.”
E porque teria nascido nele essa ideia insuportável? Porque terá sido a mãe e decerto também o pai, que admirava como o mais elevado dos homens, a fazê-lo praticar a leitura da Bíblia, certamente por ocasião do aparecimento da puberdade, isto é, do desejo sexual, e não antes conforme era tradição nas famílias judaicas.
O Génesis e o Cantar dos Cantares de Salomão são os trechos bíblicos que mais atraem os púberes e os adolescentes.
Carlos Darwin era, como tudo indica, muito inteligente. Ao verificar que, para haver continuidade de Adão e Eva para diante na sucessão das gerações, era inevitável o incesto, eram inevitáveis as relações sexuais entre a mãe e o filho, entre o pai e a filha ou simplesmente entre irmãos e irmãs.
A ideia do antropopiteco foi como uma iluminação. Se o homem proviesse do macaco por transformação da espécie, Darwin libertava-se ao mesmo tempo de ter como uma possibilidade a relação sexual com a mãe. Enviava para o subconsciente esta possibilidade, tapando-a no consciente com a sua famosa conjectura.
Veio, logo de seguida, outro judeu, tão genial como Darwin, que nos ensinou a ver o mundo da alma como um jogo às escondidas entre o subconsciente e o inconsciente. Só ele deu azo a que me tivesse aparecido esta explicação da teoria de Darwin sobre a origem do homem, o que me permitiu trazer para o meu livro de Contos um decerto muito apreciado pelo António Cândido Franco a quem o dediquei.
Claro que me é impossível admitir como é que um insecto, o meu Tejo e a minha linda mulher tenham resultado da mutação incessante das espécies, gerando-se por transformação umas às outras, a partir dum plasma original contraído numa célula, explodindo depois em mil seres, como o ponto no infinito explodindo em mil estrelas. É belo, assim dito. Mas pense o leitor na osga e na individualidade inconfundível e irredutível do planeta Marte.
Os sábios que escreveram o Zohar, o livro do Esplendor, livro certamente não ignorado de Darwin, como não o era de Freud, já indicaram no século XIII o caminho que seguiu Darwin:
“Foi somente no momento em que Adão se uniu face a face com Eva que o desejo sentido um pelo outro imprimiu aos seus corpos as formas actuais que distinguem a masculina da feminina. Eis a razão por que a Escritura diz: “E Adão conheceu Eva a sua mulher, a qual concebeu e pariu Caim.” O corpo que ela tinha nas suas entranhas começou a tomar a forma do macaco (depois da queda). Mas assim que nasce Abel, o demónio que se esforçou por fazer crescer a degradação do corpo, perdeu força. O corpo purificou-se então duma grande parte da porquidão aderente. Seth já tinha a forma dos homens actuais.” (Vol. 14, p. 115)
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Como se sabe, foi durante a viagem de cinco anos à volta do mundo que o espírito de Darwin encontrou a luz que o fez ver nas trevas do passado biológico do homem. O barco tinha o nome de Beagle, o nome de um cão, de um sabujo. O comandante, Fitzroy, “discípulo ardente de Lavater”, o famoso frenólogo amigo de Goethe, viu na forma do nariz de Charles Darwin a indicação de que o seu possuidor “não tivesse energia e determinação suficientes para a viagem”. Mas tudo se arranjou depois. A forma de um nariz, impedindo a viagem, impedindo a descoberta, se as coisas não se têm arranjado, estaríamos ainda hoje convencidos de que éramos homens e não macacos. Das mulheres não se fala, porque pertencem por direito divino a outro mundo.
Para a viagem, a autobiografia de Darwin informa-nos também que ele levou consigo um único livro: o Paraíso Perdido de Milton.
Entusiasmado com os poetas na primeira metade da sua vida, conquanto ainda acreditasse no mito bíblico da nossa origem, enfadava-se, então, a ouvir os biólogos, os matemáticos e os físicos. Depois, com a energia da descrença na Bíblia, tudo se inverteu. Os Wodsworth, os Shelley, os Shakespeare aborreciam-no até à morte. Só a ciência o entusiasmava. A própria majestade das paisagens naturais que criavam nele um sentimento religioso de espanto foi perdendo poder sobre o seu espírito. De tudo isto, poetas e paisagem, restou apenas o Milton, não o Milton dos livros que instigaram as revoluções mundiais, mas o do Paraíso Perdido. Porquê?
Vale a pena, desligando ligando, ligando desligando, tentar responder à pergunta.
Um século antes de Darwin, um grande poeta, William Blake, viera mostrar que o herói do poema não era o Arcanjo São Miguel, mas Satan, que representaria o reino[?] da liberdade contra a tirania de Deus, isto é, da religião.
O problema do mal inquietava estes espíritos, o de Milton, o de William Blake, o de Darwin.
Cada um a seu modo, como mais tarde Freud, acreditou que estava nas mãos do homem eliminar o mal na Terra, se não no Universo. Por isso, afirmaram que o Deus das religiões era o verdadeiro culpado, por aparecer nessas religiões a criar um mundo onde a lei escravizava os instintos, até os mais puros.
A filosofia portuguesa, igualmente perturbada pela existência do mal, não acusou Deus. Viu na existência do mal o resultado de um mistério. E o homem não se insurgiu, associou-se a Deus, por intermédio dos anjos, para libertar a natureza do mal e assim restituir a Deus a omnipotência perdida. Mas isto é outra filosofia. Devemos ler Sampaio Bruno.
António Telmo
[1] N. do O. – No espólio de António Telmo encontra-se uma outra versão, parcial, dactilografa, deste escrito inédito, que corresponde ao seu início. Os três brevíssimos parágrafos finais, dados entre parêntesis rectos, são, ao que tudo indica, notas auxiliares da composição, que aqui reproduzimos:
«Comprei a Autobiografia de Charles Darwin em tradução portuguesa, num só volume cuja capa é totalmente coberta pela reprodução de um retrato do biografado. Observei, elucidando-me, que as arcadas supraciliares do retratado poderiam muito bem ter-lhe sugerido ao espelho as do seu “antropopiteco” original, antepassado segundo ele e os seus numerosos seguidores, de todos nós mesmo tendo em conta, pelo que a mim diz respeito, o lindo rosto da minha mulher, como ainda hoje se vê, nos seus anos jovens. Tais arcadas formam uma plataforma por sobre os olhos.
Fui à procura numa enciclopédia. Aí aparecia de frente com dois olhos vivos muito chegados um ao outro, proximidade que veio confirmar as minhas suspeitas. Alguém verificou tal similitude antes de mim, porquanto fez aparecer na internet um gorila cuja cabeça é a de Charles Darwin.
O livro com a sua autobiografia veio abrir caminho a outra possibilidade, a de que a ideia de atribuir ao homem, ser meio divino, a vergonhosa origem animaloide lhe tenha vindo, não por via científica (isso viria depois a documentar), mas por causa de lhe ser insuportável outra ideia, a de se imaginar a ter relações sexuais com a própria mãe, a quem adorava tanto que, ao falar da mulher com quem casou, depois só vê nela o facto de ser mãe; e lembrando-o constantemente aos próprios filhos que o admiravam tanto como ele tinha sempre admirado o próprio pai.
Por que terá nascido nele essa insuportável ideia? Porque terá sido a mãe (e decerto também o pai) a fazê-lo praticar a leitura da Bíblia, por volta dos treze anos, conforme era tradição nas famílias judaicas. O Génesis e o Cantar dos Cantares, o nascimento do homem e da mulher que o origina, são os textos bíblicos que mais atraem os púberes e os adolescentes.
Carlos Darwin era, como tudo indica, muito inteligente. Ao verificar que, para haver continuidade de Adão e Eva para diante na sequência das gerações, tinha sido inevitável o incesto, tinham sido inevitáveis as relações sexuais entre a mãe e o filho, entre o pai e a filha, ou simplesmente entre irmãos e irmãs, a ideia do antropopiteco foi como uma iluminação. Se o homem proviesse do macaco por transformação da espécie, Darwin expurgava a ideia que o atormentava. Substituía-se Adão e Eva pelo macaco e pela macaca e a ideia de geração pela de transformação e evolução e a ideia do incesto perdia grande parte do seu poder. Assim o jovem Darwin enviava para o subconsciente esta possibilidade, tapando-a no consciente com a sua famosa conjectura.»
[Dá-se-lhe o nome de símio porque o macaco imita o homem.
Aristóteles: “A arte é a imitação da natureza”.
O macaco não é artista, não imita a natureza do homem, mas apenas aquilo que no homem se desvia da natureza.]