INÉDITOS. 58

09-10-2015 09:24

ÁLVARO RIBEIRO, SEMPRE!

Evocamos Álvaro Ribeiro no dia em que se completam 34 anos sobre a sua partida deste mundo com o escrito que o seu discípulo António Telmo, no dizer do próprio mestre "o seu melhor amigo", destinou ao fecho do livro Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica, parte integrante do IV Volume das Obras Completas de António Telmo, que além do prefácio de Ruy Ventura, centrado em Filosofia e Kabbalah, terá ainda um posfácio, assinado por António Carlos Carvalho, que nele se ocupa dos valiosos inéditos télmicos sobre o pensamento cripto-judaico de Álvaro Ribeiro. 

Fecho

 

Alguns dias após termos acompanhado os restos mortais de Álvaro Ribeiro não, como se diz, “à última morada”, sonhei um sonho que, se tivermos em conta a classificação antiga foi realmente um sonho divino.

Distinguem os antigos filósofos entre aqueles sonhos que recordamos, após o despertar, por sucessivas evocações, quase sempre algum tempo passado sobre o despertar, movida a memória por um estímulo que se associa com uma das imagens esquecidas e a acorda, seguindo-se depois as restantes em cadeia intermitente; e aqueles sonhos que, ao acordarmos, são como uma fotografia e como tal perduram nitidamente presentes, tão presentes que parece impróprio falar aqui de lembrança.

Nessa manhã, o sonho perdurou assim nítido durante vários minutos, até que um movimento da alma me trouxe de súbito a consciência de que estava perante um sonho.

Vi Álvaro Ribeiro sentado ao canto de uma esplanada cheia de arcadas. Aproximei-me dele, contentíssimo de o encontrar. Olhou para mim. A sua imagem era exactamente a que conheci em sua vida, mas mais nítida. Pus-me a falar das minhas cogitações íntimas, não me lembro de quais, mas sei que era qualquer coisa de metafísico, que eu reputava filosoficamente muito importante. O seu silêncio, o modo de olhar, não sei quê de bem familiar, criaram entre mim e ele uma distância, uma espécie de obstáculo invisível, como se houvesse na minha alma uma culpa que me penetrava de mal-estar.

Desviou o olhar para o quadrado da mesa, tirou do bolso a sua caneta de tinta permanente e pôs-se a traçar os movimentos de quem escreve. Sorria com bondade e alguma ironia.

Afastei-me sem me despedir, saindo para o lado de trás da esplanada onde havia uma espécie de corredor claustral. Estava ali o F. S.[1]

– O Álvaro Ribeiro enganou-nos a todos. Não era ele que ia no caixão que acompanhámos à cova. Ele não morreu. Continua entre nós bem vivo.

O meu amigo manifestando espanto e incredulidade atraí-o para um ponto de onde pudéssemos avistar o canto da esplanada. Lá estava, na mesma posição. Em frente dele, de pé, no lugar precisamente onde eu lhe falara, havia um homem de trinta e tal anos, decente num fato completo algo envelhecido. Tinha o cabelo liso penteado para trás e um rosto muito sério e atento. Era um homem simples, dir-se-ia mesmo um homem do povo, um humilde. Álvaro Ribeiro conversava com ele cheio de amizade e simpatia, mas de repente, porque sabia que o estávamos espiando, olhou para o nosso lado. Fugimos como duas crianças que temem o castigo.

Momentos depois, encontrei o E. S.[2] a quem revelei, ainda em sobressalto, que Álvaro Ribeiro não ia no seu funeral e que estava ali numa esplanada. Encolheu os ombros:   

– Só agora você sabe isso? Está todos os dias no Café Colonial.

Acaba aqui o sonho, que tratei de contar ao F. S. logo que pude encontrá-lo.

– É extraordinário! Comentou ele. O G.[3] também sonhou que Álvaro Ribeiro continua vivo e não ia no seu funeral.

 
António Telmo


[1] N. do O. – António Telmo refere-se ao seu amigo e condiscípulo Francisco Sottomayor.

[2] N. do O. – António Telmo refere-se ao seu condiscípulo Luís do Espírito Santo.

[3] N. do O. – António Telmo refere-se a Germano Teixeira, marido da afilhada de Álvaro Ribeiro, Conchita.