INÉDITOS. 39
Cadáveres adiados que procriam[1]
É interessante e até divertido observar que aquilo pelo qual nós julgamos ser diferentes dos outros, quando pronunciamos a palavra eu, afirmando com ela a nossa singularidade, é precisamente aquilo pelo qual lhes somos iguais. Há um fundo comum a todos nós, formado de vaidade e outras misérias, transmitido de pais para filhos, no qual se incorporou, ao nascer, a nossa verdadeira individualidade, «essa parcela da mente divina», para falar como o poeta iniciado mantuano que guiou Dante pelos Infernos. É esse fundo comum que nós afirmamos sempre que dizemos eu para nos distinguirmos dos outros.
É ao que alguns esoteristas chamam a falsa personalidade. Fabricámo-la ao longo da vida sobre os elementos herdados, reagindo à circunstância por sucessivas adaptações, com o fim de nos protegermos contra a hostilidade ambiente.
O verdadeiro indivíduo fica oculto, mas o que é perturbante é que fica também oculto de nós mesmos, chegando até, no pior dos casos, a deixar de ser. A esses, em que o verdadeiro indivíduo morreu, chamou Fernando Pessoa «cadáveres adiados que procriam». No rosto de cada um deles pode ver-se a decomposição da alma que precede a do corpo, deixando de si o suficiente para simular o espírito que já não têm. Com alguma atenção podemos ver que já estão mortos. Eu nunca vi um camponês sem feição, isto é, de rosto incaracterístico, mas o mundo humano que passa pela televisão aparece-me muitas vezes.