INÉDITOS. 20
Infância e Conhecimento
Todos nós nascemos não para sermos os homens que somos; a natureza cria-nos para ser outra coisa; aquilo de que a criança é embrião ou desaparece completamente no homem feito, a que Fernando Pessoa chamou “cadáver adiado”, ou se reclui numa intimidade impenetrável; a educação, não só a do Estado mas também essa, desvia o que noutros tempos constituía o curso inevitável da natureza (a criança é o ser que cresce) e, em lugar de desenvolver esse embrião de poder e conhecimento, faz o pobre ser frágil que é o adulto – poltrão, vaidoso, cuja afirmação de si não é mais estúpido do que o esconder de uma radical insegurança. Ai de quem denunciar essa insegurança!
Pelo contrário, se a criança recebesse o ensino adequado à sua essência, adequado àquilo que ela é e não ao que a supõe o adulto, cada uma seria um príncipe, isto é, um ser que em si tem o seu princípio e do qual o Infante é o seu perfeito símbolo.
É evidente que ao falar-se no Reino da Criança, no reino político da criança tal como aparece anunciado no culto açoriano do Espírito Santo, só por ignorância se atribui um reino à criança tal como a vêem os adultos, sobretudo se esses adultos são poetas menores, como Afonso Lopes Vieira, ridicularizado por Fernando Pessoa e consagrado nas sebentas[1]. A criança é o ser que cresce: o adulto não cresce, move-se como um autómato ao impulso das impressões exteriores. O Infante é o ser que já não fala, tal como o Pai Rosacruz dos sonetos de Fernando Pessoa. À criança é ensinada a língua dos adultos que transporta uma falsa representação do mundo. Um dos aspectos dessa representação está em não ser a criança como uma potência mas como uma deficiência.
Essa potência só por excepcional sorte chegará um dia a ser acto. É possível que alguns tenham escapado à destruição do seu embrião de poder e de conhecimento. Não se contrapondo, porém, como fazem os poetas menores, a criança ao adulto, como o órgão do sonho e da fantasia ao órgão da realidade e da verdade. Há um novo mundo a descobrir, – o mundo verdadeiramente real – que nem a criança tem, porque é apenas o remoto embrião de conhecimento, nem o adulto onde esse embrião feneceu ou se recluiu. Quando uma criança diz que “a lua é uma fada” ou pinta um céu verde podemos ter a certeza de que começa já a exprimir-se segundo o ensino do adulto. Por isso, Picasso dizia que a arte infantil é uma criação dos adultos. Elas levam para os sonhos, enquanto dormem, as preocupações que pomos nos seus pequeninos corpos. Porque é no corpo que se exprime aquela potência de que falamos: aquela potência inquieta e livre, uma espécie de levitação da matéria, qualquer coisa de esse que busca o sol. E, por cima de tudo, o espanto sem angústia de um ser ainda sem suportes mentais, ainda há pouco emergido do grande mar da vida. Claro que a lua não é uma fada, nem a criança, ao dizê-lo, pensa que ela seja uma fada, tal como esta se representa na mente dos adultos. Mas que a lua é qualquer coisa que os adultos ignoram, isso, se o não sabe a criança, tem, pelo menos, em si a virtualidade de o saber.
Queremos, pois, dizer que Portugal só terá cumprido o mandamento que, primeiro, o instituiu como o guardião de Três Pátrias e, depois, compreendidas estas no caos do chão político, o materno a velar sobre nós, no dia em que se realizar no mundo o reino da Criança, isto é, o reino do Homem, segundo a Ordem de Melchisedek. Mas esta missão não diz respeito só a esta terra em que vivemos. Um povo não pode ter por fim apenas ser feliz, mas ajudar a evolução da humanidade. Não pode ter como ideal esta ou aquela forma de governação, em que todos estejam bem comidos, bem servidos e bem casados. Dia a dia, a humanidade decompõe-se; a mente dos homens, de Ocidente a Oriente e de Norte a Sul, construiu uma forma monstruosa de vida. Fuzilam-se pessoas como quem mata pardais. É aterrorizador pensar, como o fez Joseph de Maîstre e Sampaio Bruno, que por detrás deste mundo há um mundo invisível de demiurgos que se alimentam dos nossos cadáveres psíquicos. Não restará outro destino ao homem que traiu o plano para que foi criado: ajudar deus a redimir o mundo.
Confiemos em que Portugal não seja um nome de Deus em vão.
António Telmo
[1] No mesmo caderno de António Telmo, encontramos, em relação evidente com o presente texto, o apontamento que a seguir transcrevemos, que se lhe segue, mas que dele está separado por um escrito interpolado sem relação directa com a ideação em apreço. A posição de António Telmo parece situar-se na superação do dilema patenteado:
Posto assim o caso, haverá no leitor uma destas duas reacções: 1. É impossível que as “crianças” mandem nos adultos, constituam ministérios, uma delas seja Presidente da República, etc., etc… Deixá-los, a poetas e filósofos, escreverem estas coisas bonitas que o mundo continuará a pisar como sempre.2. Que bonito o reino da criança! Se os adultos quisessem ser de novo crianças como o mundo seria belo! Sim, porque deverão ser a imaginação, a fantasia e o sonho os governantes dos homens!