INÉDITOS. 13
Num apontamento inédito, António Telmo parte de Camões, o poeta que mais ama e admira, para, uma vez mais, revisitar "Doutoramento e Incesto", um dos seus mais conhecidos Contos Secretos.
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Filomela[1]
“Ao longo da água o níveo cisne canta;
Responde-lhe do ramo Filomela”.
Canto nono d’Os Lusíadas
Filomela, como se deduz da etimologia, é a música porque a ama. Não se transforma o amador na coisa amada?
Na versão latina do mito, Filomela, antes de se ver transformada em rouxinol pelos deuses, não podia falar ou cantar porque lhe tinha sido cortada a língua pelo homem que a violou.
Assim como não há propriamente órgãos que se dizem da fala, pois tais órgãos a natureza os criou para desempenharem funções biológicas: comer, beber, triturar, rasgar, morder, engolir. O macaco não fala e dispõe, como muitos outros animais, de órgãos fonadores análogos aos dos homens. A língua é, pois, uma realidade espiritual: do mesmo modo a música. É a música que move as teclas do piano ou faz vibrar as cordas da guitarra, porquanto as mãos do pianista ou do guitarrista seguem submissos o comando da Musa. É o que o mito parece significar: Filomela, a quem cortaram a língua, foi transformada pelos deuses em rouxinol, o pássaro cantor por excelência.
Num dos meus contos, escrevi que “a música é a espiritualidade dos estúpidos”. Houve quem me interpretasse mal, no sentido de que eu considerava a música uma arte para gente destituída de inteligência. Não pus naquela frase esta intenção. Pelo contrário, signifiquei com ela que, sendo a música a espiritualidade na sua forma universal, por ela até os estúpidos podem experimentar a sensação do divino. Deste ponto de vista, desempenha na humanidade um papel análogo ao do amor que vem ligar o homem e a mulher.
[1] Título da responsabilidade do editor.