INÉDITOS. 104
Não sabemos se a carta, inédita, que hoje damos à estampa chegou a ser enviada ao seu destinatário, pormenor, ainda assim, de pouca importância atendendo ao seu conteúdo intrínseco. O leitor está perante um dos mais importantes documentos, que conceber se possa, para a história do movimento da Filosofia Portuguesa no último meio século. As clivagens que atravessaram a geração a que se convencionou chamar do 57 não são inteiramente desconhecidas. A posição assumida nesta missiva pelo filósofo da razão poética é sumamente esclarecedora quanto à ideia que faz daquele movimento, concebendo-o, na senda de Sampaio Bruno e de Álvaro Ribeiro, como a-confessional ou heterodoxo, num quadro de livre-pensamento.
Carta a Francisco Moraes Sarmento por mor da revista Leonardo
Estremoz
14-11-88
Exm.º Sr. Director da revista Leonardo
e meu caro Francisco
Profundos laços de fraternidade por um lado e de amizade por outro, o nome de Leonardo e o que ele deve implicar de fidelidade a José Marinho e a Álvaro Ribeiro explicam que, até agora, a presença do meu nome entre os “mentores” da Revista que v. dirige não tenha sido contestada por mim. A sua comunicação, durante o jantar do dia de São Martinho ou do deus Marte, fez “estalar as castanhas” no familiar estrépito das brasas e no esplendor das mónadas divergentes: o senhor bispo fulano de tal advertiu a Revista por um dos seus administrativos sobre o perigo, já visível, de ela se tornar um órgão do anticlericalismo. Admirei, na altura, o nobre destemor do seu espírito, quando declarou que a Leonardo não está nem estará ao serviço de instituições, sejam elas a Universidade ou a Igreja. Dado, porém, que o referido administrativo (Pinharanda Gomes) é um dos principais mentores da Revista é de supor que a minha colaboração tenha sido visada na advertência episcopal: a intriga, no nobre sentido da palavra de relação a três, estabeleceu-a o autor desse livro sub-reptícia e subversivamente antipatriótico História da Filosofia Hebraica.
No Correio da Manhã de Domingo leio agora o anúncio do terceiro número da Leonardo, com uma nota em que o meu nome aparece associado ao de Pinharanda Gomes e ao de Bigotte Chorão. O relevo dado nesse número à carta a Francisco Costa constituiu uma cedência às instituições episcopais.
Estes factos, até porque são factos, não constituem, porém, o decisivo. Eles apenas significam o proveito que os adversários do livre-pensamento podem tirar da confusão estabelecida pela conversão final ao catolicismo do pensador “obreiro”, desviando subtilmente a interpretação da sua filosofia da linha de impulso que Álvaro Ribeiro situou em Sampaio Bruno. Tudo está aqui neste desvio subtil. Não me parece que a orientação geral ou dominante da Revista possa, sem contradição, incluir entre os filósofos de filosofia portuguesa Sampaio Bruno, aceitando o ensino de Álvaro Ribeiro que o dá como “fundador”, isto é, como aquele que estabeleceu os princípios que fundam essa mesma filosofia.
Essa foi a razão secreta que me levou a recusar o seu convite de escrever, para o primeiro número, sobre o autor do Porto Culto, enviando-lhe, em substituição, um artigo sobre Leonardo Coimbra que logo provocou a censura eclesiástica, através da carta de Barrilaro Ruas. Nos livros que até agora publiquei e nos escritos que se vão dispersando por revistas e jornais deixei claramente expressa uma interpretação de filosofia portuguesa de raiz brunina e, por isso, incompatível, no domínio da religião, da política e do ensino com a que é dominante entre vós.
Ficar-lhe-ei, pois, muito grato se o vir obrigado a não incluir nas próximas publicações da Revista o meu nome. Não significa isto que me recuse a responder à segunda carta do Barrilaro Ruas.
Abraça-o com sincera amizade
António Telmo