INÉDITOS. 06

07-03-2014 10:25

Irreverente, audaz, desassombrado, revisitando criticamente, mas ludicamente (pelo superior exercício do jogo), a sua História Secreta de Portugal, admitindo que há nela erros vários (espantoso gesto de humildade este, num tempo de homens infalíveis, pois que cheios de certezas!), eis António Telmo com a sua "Epístola aos Hieronimitas", mais um inédito saído do espólio do filósofo, aqui comentado por António Carlos Carvalho.     

Epístola aos Hieronimitas

 

Como manda a cortesia, começo por me apresentar. Católico praticante se houvesse Igreja, maçon sem Loja e Português sem Pátria, tudo isto sou anonimamente. Dir-me-á que fica sem saber nada de mim: o nome, a morada, o lugar de nascimento, a idade. Acha v. que se determina quem seja uma pessoa pelo seu bilhete de identidade? Na verdade, não estou nada interessado em que me responda, depois de ter lido esta carta. Se vier a concordar com o que nela digo, poderá aproveitá-la para escrever um novo livro sobre o Mosteiro dos Jerónimos. Como na sociedade em que vivemos está proibido o anonimato para qualquer publicação, ponha como nome de autor o seu. Imagine que, por qualquer motivo, a polícia o queira identificar, na intenção de saber quem é o homem que escreveu um livro que não é politicamente correcto. Consultará a ficha que regista no computador todos os dados sobre si. Por esse processo, identificou realmente o autor do livro?

Claro que não há esse perigo, porque aquilo de que lhe vou falar está fora da zona vigiada pela polícia. É coisa para intelectuais, mais ou menos loucos, mas inofensivos, pelo que não há também da parte do Estado qualquer interesse em encerrá-los num manicómio. Pois o que é que tem que ver com o mundo o Mosteiro dos Jerónimos, além de servir o turismo? É um lugar de solenidades? Óptimo. O livro será bom para uma e outra coisa.

Não foi, porém, para dizer estas inanidades que resolvi escrever-lhe. Li, há vinte anos, a sua História Secreta de Portugal, li agora o seu Horóscopo de Portugal. Não concordo com a explicação que v. dá do claustro dos Jerónimos e dos seus símbolos, de Portugal e do seu destino. Não concordo, não é bem a palavra. Gostaria que houvesse mais luz no que escreve, uma luz que, deixando mais ou menos tudo como o põe, o iluminasse revelando uma ideia completamente diferente da sua.

Por favor, não me tome por um Superior Desconhecido. Sou, como lhe disse, um maçon selvagem sem Loja, não sou Iniciado, nunca passei debaixo das espadas. Sou um qualquer Nicolau Coelho, sem rosa no ombro e sem laço ligando-o a uma superior organização.

Comparei-me ao Nicolau Coelho e, tem graça, é precisamente por aqui que convém começar a minha lição.

Diz v. na p. 47 da História Secreta de Portugal: “A observação atenta e pormenorizada das efígies dos quatro navegadores da face sul revela entre a de Nicolau Coelho e as dos outros três diferenças assaz estranhas, incompreensíveis fora da nossa interpretação. É o caso que os bustos de Vasco da Gama, Paulo da Gama e Pedro Álvares Cabral estão circunscritos por cornucópias, enquanto o de Nicolau Coelho está posto dentro de um círculo “rude, tosco e informe”; os chapéus dos primeiros estão presos ao alto por um laço; só Nicolau Coelho não ostenta no ombro a rosa iniciática.” Segue-se a afirmação de que isto é assim porque Nicolau Coelho não seria como os outros um iniciado, como se deduz das seguintes linhas de Mircea Eliade, citadas numa oportuna nota: “Quatro pontos definem a iniciação dos châmanes: 1. A vocação iniciática é o resultado de uma escolha divina; 2. Esta escolha é comunicada ao futuro châmane na imagem de um fio que desce do céu e poisa sobre a sua cabeça; 3. A descida do fio tem o carácter duma fatalidade, como se o destino fosse repentinamente revelado; 4. Com efeito, a pessoa escolhida sente que perdeu a liberdade individual: sente-se cativa, ligada pela vontade de Outro, encadeada.”     

Até aqui tudo está certo. Não há também refutação possível do argumento que deduz uma significação esotérica para o claustro a partir da irregularidade que é na sucessão das efígies dos navegadores a efígie de Nicolau Coelho. Se a inteligência que guiou a mão do escultor tivesse obedecido apenas a uma finalidade estética, não se compreenderia uma diferença tão marcada. Do mesmo modo poderia v. ter confundido os “estetas” mostrando-lhes o absurdo, do ponto de vista deles, de as cinco chagas aparecerem duas vezes repetidas na série dos vinte medalhões.

Aliás, nas criações artísticas de carácter iniciático há sempre uma irregularidade que é a chave capaz de abrir o entendimento do observador contemplativo para o sentido que nelas se encobriu.

Tudo está, pois, certo. O que não está certo é a conclusão a que v. chega: “estamos aqui perante a própria iniciação do navegador Nicolau Coelho.”

O leitor do seu livro conhece a história que, depois, v. urdiu indo até ao ponto de identificar o lugar onde Nicolau Coelho foi “recebido”, uma ermida na zona de Palmela em cuja pedra de fecho da abóbada está impressa uma efígie, já com os atributos iniciáticos na qual imagina a figuração do próprio Nicolau Coelho. A razão que apresenta não é razão: pessoas consultadas por si acharam os dois rostos muito parecidos. Isto envergonha-o, mas se quiser escrever o tal livro escusa de o referir.

Eu não digo que a ermida não fosse uma loja, isto é, um lugar de manifestação do logos. Tudo o indica: o chão em xadrez, a fonte no sítio do altar, a irradiação oitavada das estrias, etc. Como pode acontecer em todos os lugares outrora santificados, v. mesmo lhe experimentou a força naquela visita que ali fez com um amigo e no que se seguiu depois. Estou-me referindo ao que descreve no capítulo Fenómenos Misteriosos, acrescentado à primeira edição da História Secreta.

O que eu digo é que o que se representa a toda a volta do Claustro não pode ser a iniciação de Nicolau Coelho porque é absurdo que se subordinasse todo o sentido do Claustro a um acontecimento que, tendo embora relativa importância, está muito longe de poder explicar o carácter iniciático dos Descobrimentos, que é, julgo eu, a afirmação primacial do seu livro.

Por que é que não vemos a coisa de uma maneira simples e directa? Estão ali três navegadores fitando de frente o Sol: dois são iniciados, o terceiro não é. Contudo, apesar de não o ser, fita também o Sol. Deve admitir que isto constitui um sinal de esperança para todos nós que não somos iniciados.

Eu sei que esta história do Nicolau Coelho recebendo a iniciação à pressa, numa ermida longe lá nas terras de Vasco da Gama, uma misteriosa ermida cabalística, e recebendo-a antes de partir para a Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia, na qualidade de comandante da Bérrio e o mais que nela v. inclui é o que, em boa parte, explica o êxito editorial do seu livro em leitores educados quotidianamente pela televisão de mistura com publicações marcadas por um esoterismo fantasioso, quando não tenebroso, quase sempre de proveniência americana.

Claro que leitores deste tipo não podem ter reparado nos erros frequentes que v. comete ao longo do livro, como esse imperdoável, aliás corrigido em Horóscopo de Portugal, que dá o Sul como correspondente à Primavera, quando o é ao Verão, o Ocidente como correspondente ao Inverno quando o é ao Outono, e assim para os outros dois pontos cardeais sucessivamente. Se esta correspondência, em vez de estar numa das últimas páginas, na 155, estivesse numa das primeiras, eu teria posto de parte o livro e não teria chegado a conhecer as coisas preciosas que ali se dizem.

 

António Telmo

____________

Comentário    

António Carlos Carvalho

 

Comecemos pelo título, insólito, lembrando obviamente as epístolas doutrinárias de Paulo de Tarso às comunidades de cristãos seus seguidores. Mas quem são os hieronimitas? Esta é a designação dos monges da Ordem de S. Jerónimo, aos quais, aliás, foi confiado o Mosteiro de Santa Maria de Belém. Mas há muito que não há ali monges: há fiéis das missas, há turistas, há convidados de casamentos e baptizados e de algumas cerimónias oficiais ou então melómanos que vão assistir a concertos. Mas não monges.

Então quem são os hieronimitas aos quais esta curiosa epístola se dirige? Creio que somos nós, os que ficámos definitivamente ligados ao Mosteiro dos Jerónimos desde que lemos a «História Secreta de Portugal» e com essa leitura tivemos uma espécie de revelação e de desvendamento acerca do significado da nossa História, do carácter iniciático dos Descobrimentos mas também do simbolismo inscrito nas pedras desse monumento. A partir dessa leitura não era mais possível olhar para o mosteiro sem ver aí os sinais que António Telmo nos apontava nas pedras centenárias.

E, falando só por mim, que tive o privilégio de ler o manuscrito, esse livro pioneiro de Telmo abriu-me também os olhos para outros monumentos que tantos portugueses ilustres e geralmente anónimos nos deixaram como lugares de meditação sobre o nosso destino como Pátria e como Povo. Mas sempre tomando os Jerónimos, lidos por Telmo, como ponto de referência essencial. 

«História Secreta de Portugal» foi de facto, e continua a ser, para muitos de nós, a descoberta de António Telmo e de um monumento até então olhado mas não visto nem lido. Então, nesse sentido, ficámos todos «hieronimitas». E esta epístola é realmente para nós e poderá ter sido escrita em 1997, a avaliar pelo que o seu autor escreve.

Mas como quase todos os textos de António Telmo só são simples na aparência e na verdade encerram diversos níveis e exigências de leitura, esta epístola também não escapa à regra. Em vez de se dirigir a um colectivo de «hieronimitas» assume logo a forma de uma carta pessoal de «alguém», anónimo, para o autor de «História Secreta de Portugal»: esse alguém diz ser «católico praticante se houvesse Igreja» (imagino já a perplexidade e o incómodo que isto poderá causar em certos meios...), «maçon sem Loja» (idem, idem) e «português sem pátria» (afirmação perfeitamente coerente com o que se afirma no livro). Alguém que sublinha que não se determina quem seja uma pessoa pelo seu bilhete de identidade – o mistério do nome e do ser não se circunscreve nem se desvenda num documento oficial --, sendo, todavia, todos nós obrigados a viver num tempo em que o anonimato é proibido. E esse «maçon selvagem sem Loja, não iniciado, um qualquer Nicolau Coelho», diz ainda ao nosso autor que, se concordar com a carta, pode até escrever um novo livro sobre o Mosteiro dos Jerónimos...

Pelo meio, fazendo notar que nas criações artísticas de carácter iniciático há sempre uma irregularidade que é a chave para se entender o seu sentido encoberto (como se vê no claustro dos Jerónimos), o autor da carta contesta que a iniciação de Nicolau Coelho esteja representada no claustro ou que a tal capela em Palmela seja o lugar dessa mesma iniciação; atribui o êxito editorial do livro a um interesse fácil por essa mesma iniciação entre leitores educados pela TV e pelo esoterismo fantasioso de proveniência americana; e até fala de «erros frequentes ao longo do livro», salientando as falsas atribuições do Sul e do Ocidente à Primavera e ao Inverno respectivamente (mas não vai mais além). Em contrapartida, sublinha que no livro se dizem «coisas preciosas».

Parece-me evidente que estamos perante uma importante reflexão – sob a forma de uma carta de si para si próprio – de António Telmo sobre a sua própria «História Secreta», que ele vê, vinte anos depois, como um livro nunca fechado e concluído, por um lado, e até mesmo necessitando de correcções. Além de ser um livro que se afastou do plano inicial congeminado juntamente com o mestre Álvaro Ribeiro (sabemos já isso através do inédito entretanto divulgado nas páginas deste projecto).

Provavelmente (assim poderemos esperar) haverá no espólio de António Telmo mais textos sobre o seu livro e a sua leitura dos Jerónimos. Mas para nós, «hieronimitas», o fundamental foi dito e escrito nas páginas da «História Secreta», nesse ano de 1977. Páginas luminosas, irradiantes de luz, como o Sol representado naquele medalhão do lado Sul do claustro. Esta «Epístola» e outros inéditos que entretanto apareçam e sejam publicados são centelhas dessa mesma luz e um incitamento para a nossa própria viagem de descobrimento. Uma viagem sem fim.