INÉDITOS. 05
O trabalho que vem sendo desenvolvido no espólio télmico pelo projecto António Telmo. Vida e Obra traduz-se já em frutos vários e visíveis, sem nunca se perder de vista a empresa sumamente importante que é a edição das Obras Completas do filósofo. Oferece-se agora aos leitores o primeiro de três escritos autobiográficos de António Telmo com particular incidência astrológica. Os outros dois serão aqui em breve publicados. Todos foram já estudados e comentados por Eduardo Aroso, membro deste projecto particularmente autorizado no domínio da Astrologia. Daí, também, que este tríptico surja antecedido de uma Introdução versando "António Telmo e a Astrologia", que desde já abre perspectivas para a conferência que, sobre o tema, e com este título, Eduardo Aroso irá proferir na Biblioteca Municipal de Sesimbra, na quinta TARDE TÉLMICA deste ano, em 25 de Outubro.
António Telmo e a Astrologia. Introdução
Eduardo Aroso
Se considerarmos o que António Telmo escreveu sobre astrologia, vemos que o filósofo, nesta matéria, foi não só um intuitivo como alguém que, de um ponto de vista da lógica estelar, discorria com fluência na interpretação tantas vezes labiríntica da roda, onde não é fácil ver o essencial: os movimentos da alma e do ser incarnado nos acontecimentos da vida terrena. E nisto convém já descartar alguma “ganga” associada à interpretação dos astros, como, por exemplo, a questão do falso conceito de “fatalismo” e de prognóstico. Um roteiro que nos é dado (inevitavelmente pelo acto do nascimento) pode ser seguido totalmente ou não. Na planta de uma casa algumas modificações podem ser feitas, perante o que se projectou inicialmente, não alterando a estrutura principal. A maior ou menor ondulação do mar diz-nos da certeza de haver movimento e a hora da preia-mar calcula-se com base na determinação do ciclo, independentemente da existência ou não de pessoas na praia. Podemos dizer que, em síntese, é isto o significado de um horóscopo de nascimento.
Projectando-se hoje na astropsicologia séria, como é o caso da «transpersonal psychology», a convergência da milenar gnose astrológica ou antigo arcano e a «arte de filosofar» (como disse certeiramente Álvaro Ribeiro, intitulando uma das suas obras fulcrais), a hermenêutica da Cabala e ainda outros atributos que não vêm agora ao caso, fazem de António Telmo uma figura carismática no movimento da filosofia portuguesa. Apesar da nossa tradição astrológica (com excepção de um Fernando Pessoa que a estudou e praticou, de um Mário de Saa, que se centrou em Camões, e de alguns investigadores no campo histórico, como Manuel J. Gandra), no que toca aos espaços da filosofia enquanto interrogação, não consta que a astrologia tenha sido aflorada nas tertúlias das gerações do pensamento português do último século, Ou, se o foi, escasseiam os registos.)
Para além do tratamento aturado e medular que no seu pensamento AntónioTelmo deu à Cabala, a atracção pelo significado dos astros, numa espécie de sinergia filosofia-astrologia (ramos de conhecimento diversos e antigos e que não necessitam de se misturar para dar força ou se justificarem mutuamente), e ainda que o pensador não tenha feito «cavalo de batalha» da segunda, fazem dele uma presença singular. Este facto leva-nos necessariamente a questionar se, por isto, ou também por isto, o filósofo de Estremoz se posicionou naturalmente, como talvez nenhum outro, enquanto elemento polarizador para as gerações novas. Neste ponto, ver-se-á futuramente também a importância do signo de Leão no ascendente do seu horóscopo, bem como Neptuno em conjunção.
Se pretendêssemos uma simples ideia, um breve excerto de algum texto do filósofo que desse sentido ao sentido que há num horóscopo (espelhar, numa linguagem simbólica, a imagem do céu enquanto roteiro celeste para nossa vida, e partindo da interpretação deste para um significado subtil mas em conexão com percurso individual ou destino) o seguinte excerto de Arte Poética seria um deles: «o movimento da filosofia deverá consistir, pois, não em fugir para um mundo suprassensível, mas em tomar consciência da imensa força na qual vivemos e somos, - em encontrar o dissolvente universal.» Ou seja, a interpretação da linguagem do horóscopo leva-nos a tomar consciência dessa «imensa força» singular (projecto pessoal ou destino) que está em cada ser humano, através do sensível (acontecimentos da vida), afinal, os efeitos. Por estes, podemos, subtil mas não menos verdadeiramente, chegar a certas causas e a um melhor entendimento do nosso viver. «Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ Mas nele é que espelhou o céu». Fernando Pessoa – aqui, e sempre sem necessitar de justificar a astrologia com a poesia ou outra forma de conhecimento – dá-nos, ainda que seja no colectivo, essa imagem do que é um horóscopo, perspectiva, neste caso, bem mais sublime do que vulgarmente se tem. Isto é, se o trajecto de cada um neste mundo deve interpretar, e depois seguir, a mensagem do céu ou relação do homem com o Criador, plasmada no horóscopo, também o céu se espelha por certo numa vida virtuosa, sábia e santa. Ou como disse Frei Agostinho da Cruz «Verei o Criador nas criaturas». Este céu que Deus espelhou no «mar sem fim» é o signo Peixes, que Pessoa colocou no alto ou também chamado Meio-do-céu do horóscopo de Portugal. Peixes, signo aquoso e universal, o último do zodíaco que, por isso mesmo, se liga ou religa ao primeiro, Carneiro, o de todos os começos. Afinal, o nosso ouroboros.
28-2-2014
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Na casa de meu Pai, éramos três irmãos*
Na casa de meu Pai, éramos três irmãos. Na verdade houve quatro. O primeiro morreu nos primeiros meses de vida, de modo que o segundo, Orlando, passou a ocupar o lugar do primogénito. Eis por que me posso considerar o terceiro filho. O outro dos meus irmãos chama-se Rui: recebeu o nome do falecido.
Nasci às duas horas da tarde do dia 2 de Maio de 1927, com o Sol em Toiro e o ascendente no grau 24 de Leão. A casa nona, que os astrólogos designam pela casa da filosofia e relacionam com a grande viagem, estava ocupada pelo Sol, pela Lua e por Mercúrio; Urano explosivo em Carneiro na casa oitava; Júpiter em Peixes, bem domiciliado; Marte, débil, na undécima casa; Saturno na quarta casa; Vénus resplendente em Toiro na décima casa; Neptuno[1]
Meu irmão Orlando, mais velho cinco anos do que eu, por uma associação invulgar de acontecimentos, viria a ser aluno e depois discípulo de José Marinho. A casa de meu Pai, no ano em que ele foi estudar para Lisboa na Faculdade de Letras, estava em Arruda dos Vinhos. Esta entrada de meu irmão no grupo dos discípulos de Leonardo Coimbra, chegados há poucos anos do Porto, abriria também a mim as portas da filosofia. Liguei-me muito mais intimamente a Álvaro Ribeiro, a quem me liga ainda hoje e me ligará sempre a mais profunda gratidão.
Toda a gente que conhece o Orlando Vitorino, por o ter lido ou por o ter ouvido, sabe que se trata de um dos espíritos mais lúcidos do nosso tempo e ninguém será capaz, sem remorso, de lhe negar a fruição de uma inteligência superior. Encontrei da sua parte, não obstante, uma constante hostilidade dentro do grupo. A minha carreira de escritor tornou-se dificílima. Ele não fazia mais do que obedecer à inexorável lei que opõe o primogénito ao benjamim, àquele que representa na família o princípio da revolta e do renovo. O conhecimento desta lei, pela leitura do Antigo Testamento e dos contos tradicionais, ajudou-me muito a manter uma certa impassibilidade, ao mesmo tempo que me incitava a realizar o meu destino de filósofo.
É deslumbrante observar como a condição de primogénito se reflecte no pensamento de Orlando Vitorino. A admirável criação de Deus é sem quebra ou falha. O mal não tem existência real. O fim do homem é assumir-se como a inteligência que compreende o mundo criado. Há, neste sentido, movimentos periféricos de degradação da inteligência, explícitos no socialismo, por exemplo, pela submissão dela no colectivismo da mediocridade. O papel do homem é conservar, bem alta e nítida, a luz que reflecte o esplendor da criação, promovendo o valor do indivíduo. A liberdade tem nesta visão o sentido que, em economia, se exprime pelo liberalismo e, em filosofia, pelo exercício do pensamento. O filósofo assume-se aqui como o primogénito de Deus.
Os caminhos para que, no meu torpor mental desses anos moços, tendia o meu espírito eram os difíceis e perigosos caminhos da gnose. Nunca quis ser um homem de pensamento, mas um homem de conhecimento. O pensamento haveria de ser, tanto como o sentimento ou a sensação, um órgão de conhecimento. Daqui não me ser difícil formar a ideia de um corpo subtil degradado no corpo físico, admitir consequentemente a queda, se não de Deus, pelo menos de uma parte de Deus, “pars divinae mentis”. O órgão do conhecimento é todo o corpo: pensamento, sentimento, sensação são solidários no acto de gnose. Sem restabelecimento do estado original, anterior à queda, isto é, sem formação do corpo subtil e luminoso, a obscuridade das sensações e dos sentimentos, o seu torpor determinam as categorias e formas do pensamento.
O grupo de filosofia portuguesa reunia-se nesse tempo na Brasileira do Rossio, hoje, como a maioria dos cafés, transformada em banco. Vale a pena descrevê-la, uma vez que muitos leitores já não puderam conhecê-la. É hoje em mim uma impressão de duas colunas de mármore castanho e brilhante da Arrábida numa casa comprida, escura e cheia do fumo dos cigarros. De um e de outro lado, espelhos paralelos multiplicavam as suas imagens até ao infinito. Supúnhamos ser uma antiga loja maçónica e os mais novos, na sua fantasia de adolescentes, viam no facto de ali ser o lugar de reunião da filosofia portuguesa uma escolha intencional dos mais velhos.
Constava que Álvaro Ribeiro era maçon. Para nós, a Maçonaria que, mais tarde, viria a patentear-se-nos como uma organização política de práticas e fins medíocres, era um lugar misterioso do espírito, que continha, envolvida de grande segredo, o ensinamento primeiro e último. Esta falsa noção actuava como um catalisador. Não seria, pois, possível atingir o verdadeiro conhecimento através dos livros e da reflexão própria. Eu não aprendera ainda a separar o homem social do homem real, sobretudo ou muito menos naqueles com quem privava diariamente. Conhecemos uma pessoa por um nome que nada nos diz na medida em que serve apenas para a determinar na multidão indefinida das outras pessoas; ligamo-la a uma família, a uma profissão, a um meio social; atribuímos-lhe mais ou menos valor; relacionamo-la principalmente connosco, com os nossos interesses, prezando-a ou desprezando-a conforme actua em relação ao sentimento que vivemos da nossa própria importância.
Era ainda o sentimento da nossa própria importância que funcionava na criação de um falso mistério à volta da pessoa de Álvaro Ribeiro. A possibilidade de virmos a ser iniciados na Maçonaria através dele tornara-o prestigioso e prodigioso a nossos olhos. Púnhamos assim véus sobre véus a esconder o verdadeiro mistério que é o do ser singular, tal como é em si, na relação vivente com a insondável origem donde todos os seres provêm e perdíamos assim a possibilidade de nos conhecermos, perscrutando-nos, na mesma insondável relação.
Todavia, eu gostava de subir o Chiado lentamente, porque era um espanto a singularidade de cada rosto, olhado numa espécie instintiva de dupla atenção. Todos aqueles rostos, um a um, sobretudo os olhos, emergiam repentinamente do desconhecido que me habitava.
Uma tarde, já depois do pôr do sol, encostava-me, ocioso e distraído, a uma parede da Calçada do Combro, observando vagamente as pessoas que passavam. Toda a minha vida tem sido este ócio e este torpor mental, esta penumbra de adormecimento, onde, de vez em quando, se acendem luzes e passa, alheio de si, o pensamento. Era a hora em que as alunas de uma Escola Comercial regressavam a casa, nas suas batas brancas. Olhei, mais demoradamente, para uma rapariga de cabelos ruivos, de pele muito branca e, de repente, conheci a sensação estranha de estar a viver aquele momento pela segunda vez: o lugar, a hora do dia, aquelas pessoas que passavam naqueles mesmos sítios e com aqueles mesmos movimentos, eu encostado e a rapariga, nos mínimos pormenores, eu tinha já visto ali. Segui Helena que se deixou seguir. Não casámos, porque a nossa história era do outro mundo.
Este fenómeno é bem conhecido de psicólogos, parapsicólogos, espíritas, teósofos, de toda essa fauna humana que [as] almas seduziu e engana. Henrique Bergson dedica-lhe um capítulo da “Energia Espiritual”.
António Telmo
* Título da responsabilidade do editor.
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Comentário
Eduardo Aroso
DE UM TEXTO ONDE ANTÓNIO TELMO FALA DO SEU HORÓSCOPO, DA SUA FAMÍLIA E DAS TERTÚLIAS DA FILOSOFIA PORTUGUESA
Para além do que é comum saber-se, o dia, o mês, o ano e o local onde se nasce, António Telmo diz-nos a hora em que veio ao mundo, indicação preciosa para levantar com exactidão o horóscopo. Portanto, às 14 h de 2-5-1927, em Almeida, Portugal. Seria interessante averiguar onde foi buscar esta informação; se da respectiva certidão, se da boca da sua mãe. Dados que nem sempre batem certo entre si. Todavia, os acontecimentos da vida do filósofo (assunto aflorado, em parte, já à frente) permitem dizer que essa hora, se não absolutamente certa, deve ser muito aproximada. Por isso, António Telmo sabia o grau do seu Ascendente (24) do signo de Leão, bem como a posição dos planetas nas casas (ou domicílios) do horóscopo, que indicam as várias actividades do ser humano. Por exemplo, refere-se à posição do Sol, e cito, na «casa nona, que os astrólogos designam pela casa da filosofia e relacionam com a grande viagem». Telmo, provavelmente por não o querer fazer (mas, por certo, sabendo-o), é de crer que omite o seguinte pormenor importante: sendo esta casa (9ª) a das viagens longas, o mesmo é dizer as relações com povos e países estrangeiros, vemos claramente a linha de causa-efeito na sua vida – viveu em Espanha e no Brasil e, sobretudo neste, contactou com mestres (que a 9ª casa também rege) como Agostinho da Silva e Eudoro de Souza, entre outros, episódios que marcaram profundamente a sua vida, sendo que o significado desta casa refere-se também à própria capacidade de ensinar a um nível superior. Note-se que, nesta casa, seguindo a observação do filósofo, para além do Sol se encontram a Lua e Mercúrio, este último relacionado com a comunicação e as viagens.
Com a palavra Neptuno António Telmo inicia uma frase que não conclui, não se sabendo as razões. No entanto, a posição do planeta é importante por estar junto do Ascendente, isto é, a um dos quatro pontos da chamada cruz, sendo os restantes, o ponto oposto ou complementar o Descendente, o Meio-do-Céu e o Fundo-do-Céu. A conjunção de Neptuno no Ascendente (também por este se relacionar muito particularmente com o corpo físico/energético) confere um alto grau de sensibilidade física, psíquica e espiritual, pelo que E. Bacher designou esta situação típica como a «capacidade de instrumentalização» por forças transcendentes e, em última análise, divinas, para uma actividade de ordem superior. Não sendo todavia o caso do filósofo autor de História Secreta de Portugal, esta configuração astral em certos indivíduos pode servir de veículo a situações negativas, a qual a pessoa poderá não controlar. Assim, com Neptuno nesta posição e no signo de Leão (chefia, poder irradiante, expressão luminosa ou “realeza de espírito”, etc) é fácil começar a ver, astrologicamente, o perfil do filósofo. Há 4 signos cardinais, 4 fixos e 4 comuns ou mutáveis. Os fixos correspondem ao meio das estações: Touro/Maio, Leão/Agosto, Escorpião/Novembro e Aquário/Fevereiro. Telmo nasceu com o Sol e com a Lua em Touro (na Lua Nova). Touro, elemento terra, dá firmeza e estabilidade a tudo o que sob ele se faça. Junte-se a isto o que se disse sobre a natureza de Leão, e entendemos essa auréola que foi reunindo à sua volta um grupo cada vez maior de discípulos e amigos.
Lua Nova de Peixes, 2014
[1] Este parágrafo termina aqui, com a frase por concluir e sem qualquer sinal de pontuação.