INÉDITOS. 04

11-02-2014 23:26

Foi a única das suas pranchas que António Telmo não incluiu n'A Aventura Maçónica e constitui um exemplo flagrante do propósito de rectificação da Ordem que, na senda de Fernando Pessoa, e já desde a História Secreta de Portugal, foi também o seu. Na versão do texto que agora apresentamos ao leitor, suprimimos um curto período, no estrito respeito pela reserva da indentidade de um maçon português que Telmo ali refere. Não assim no caso de José Manuel Anes, igualmente mencionado no escrito, por ser do domínio público, e aliás assumida pelo próprio, a sua condição maçónica, até porque foi Grão-Mestre da Grande Loja Legal de Portugal.

Uma prancha maçónica

 

Venerável Mestre e meus Irmãos

Tenho 71 anos. Sou, do ponto de vista profano, o mais velho da nossa respeitável Loja. Tenho 3 anos. Sou, do ponto de vista iniciático, o mais novo desta respeitável Loja.

Isto de ser, por um lado, o mais velho e, por outro lado, o mais novo, isto de ser, ao mesmo tempo, o mais velho e o mais novo tem, para mim, uma especial significação, e só para mim, pelo que peço desculpa de o lembrar. Podeis, no entanto, imaginar o que senti quando, no acto de investidura do nosso Venerável Mestre, fui eu quem entregou as vestes simbólicas, como se a corrente espiritual se concentrasse toda no último, como se o último dos últimos detivesse todo o poder da Loja naquele momento de aparente ocultamento do Oriente. É bem certo que o rito terá outras e, sem dúvida, mais profundas significações do que esta. Não é disso que vou falar, até porque o nosso Irmão Orador, na reunião em que ele se celebrou, já foi muito além do que eu seria capaz de dizer.  

No dia 17 de Abril, entrei nesta casa com 70 anos e saí dela com três. Na noite da minha iniciação, alguém me perguntou pela razão por que só tão tarde bati à porta do Templo. Não houve uma razão, houve várias razões. Direi apenas uma.

É que eu, embora visse na Maçonaria uma instituição admirável, formava muito má opinião dos maçãos portugueses. Conheci de perto alguns e dos Altos Graus com quem conversei algumas vezes sobre a Maçonaria. Sentiam-se orgulhosos de pertencerem a tão elevada instituição, mas lamentavam que se mantivesse nela a palhaçada dos símbolos e dos ritos. Estavam muito mais interessados na acção social da Ordem do que na realização espiritual de cada um dos seus membros. Pareciam mesmo ignorar o que fosse essa realização. Estavam assim incapazes de compreender que só através dela seria possível constituir o escol da Pátria e dar ao humanitarismo e ao universalismo que defendiam um núcleo irradiante concreto.

O ritual uma palhaçada! Estranho enigma este! É espantoso como foi possível conservar, ao longo dos séculos, inalteráveis, no que lhes é essencial, ritos e símbolos maçónicos, quando enormes forças, cá dentro como lá fora, tudo têm feito para os adulterar e corromper! Lá fora, o exemplo da Igreja Católica, degenerando ritualmente até à americanização da Missa, deveria constituir um aviso para aqueles que, embora respeitando o rito, valorizam muito mais a acção social da Maçonaria. Tão certo é que o predomínio conferido aos objectivos sociais sempre esvazia de conteúdo instituições que nasceram para nos ligarem a Deus e não para dominar os outros homens. Além disso, que acção social pode ser legítima se não arranca de um núcleo de luz irradiante? E, sem a relação com o Oriente que o rito conserva, como é possível agir a partir desse núcleo?

Aos setenta anos, tive a sorte de conhecer um verdadeiro Mação: o José Manuel Anes, que, ainda por cima, segundo soube na altura, desempenhava dentro do Regime Escossês Rectificado um papel de grande relevo. Eu tinha notícia do RER pela leitura de Jean Tourniac. O ilustre francês descobriu-lhe raízes na Ordem de Cristo e na Ordem de Avis. Isto surpreendia e atraía o autor da História Secreta de Portugal. (…). Pedi para ser iniciado e assim vim a pertencer a este admirável povo maçónico.

Emprego propositadamente a palavra povo. Todos sabemos como a verdadeira sabedoria se conserva e transmite, ao longo dos séculos, e dos milénios, através do povo. Os intelectuais que o têm governado e pretendido ensinar têm vindo a cindi-lo, pouco a pouco, dessa sabedoria. Afrancesaram-no ontem, americanizam-no hoje. O saber esotérico que os homens, as mulheres e as crianças receberam dos iniciados por um processo misterioso, que se conserva nas danças, nos cantos, nos adágios, nas festas, nos jogos e, sobretudo, na língua que ele criou, ele o povo, que dizem analfabeto, degenerou em folklore. Os turistas apreciam-no em espectáculos que deixaram de estar relacionados com a vida. Até a língua passará a ser um espectáculo, quando toda a gente em Portugal falar inglês ou espanhol.

Na Loja Quinto Império, pelo que tenho observado, o povo maçónico não deixará que o mesmo aconteça. Podemos não compreender o que de mais fundo significam ritos e símbolos, mas não há um gesto, uma palavra, um movimento que não sejam cumpridos como se obedecêssemos a uma ordem, não há gesto, palavra, movimento em que o espírito da Ordem Maçónica não esteja presente mandando tudo. Assim procede o nobre povo maçónico. A sua ignorância é a sua sabedoria, porque só quem tem consciência de ignorar pode vir a saber.

Gosto de estar entre o povo maçónico e de ser um deles. Sinto que o sou de pleno direito, não porque perfilhe esta ou aquela ideologia, mas porque fui iniciado e passei pelo rito que me abriu a porta do Templo. Não é com orgulho que digo isto, mas sim para expressar que o que define um Mação enquanto Mação é a passagem pelo rito. Se há um ensinamento ou uma doutrina que todos nós devemos seguir e até aplicar no nosso campo de influência social, esse ensinamento ou essa doutrina derivam do próprio rito, onde as palavras, ritualmente proferidas, os tornam suficientemente claros.

É tal a força do rito que mesmo aqueles que o têm por uma palhaçada e que, deixando-se iniciar, passaram por ele talvez indiferentes, orgulhosos do que aprenderam ao longo da vida em quaisquer livros ou em qualquer Universidade, também esses foram impressionados. Ao empregar esta palavra tomo-a no sentido que ela tem, por exemplo, em fotografia ou em tipografia; não a tomo no sentido de emocionados. Ensinou Aristóteles, na sua Arte Poética, que, nos mistérios de Elêusis, o neófito nada aprendia, mas recebia uma impressão. O ritmo interior que comanda o rito (não me refiro ao cerimonial, que pode ou não acompanhá-lo) envolve o neófito, durante a iniciação, no profundo e inefável mistério que por ele se exprime, envolve-o como uma onda, donde sai atordoado, mas limpo, prende-o numa cadeia magnética de que não se libertará jamais, a não ser por cima, se assim o quiser o Grande Arquitecto do Universo. É por isso que se diz que um Mação nunca deixará de o ser, mesmo que abandone a Ordem.

Podeis assim ver, meus Irmãos, como eu estava errado e estão todos aqueles que julgam a Maçonaria pelos Maçãos. É que não há nenhum, por mais superficial e irregular que seja a sua interpretação da nossa augusta Ordem, que não esteja marcado pelo seu sinal, que não seja um “varão assinalado”.

Este sinal é o que foi traçado como uma cruz no seu corpo subtil pelo raio de luz que recebeu durante a iniciação. Isto que parece uma imagem poética tocada de irrealidade tornar-se-á mais claro e concreto com a seguinte comparação. Imaginemos o nosso espírito como um espelho, não como um aparelho produtor de formações mentais, que é a habitual e errada representação que se faz do espírito, assim o confundindo com o aspecto cerebral da alma ou do corpo se preferirdes. Para que o espírito, assim concebido como um espelho, receba a verdade são necessárias, pelo menos, três coisas. É necessário que esteja limpo para que não receba turva e distorcida a imagem da verdade; é necessário que entre ele e a verdade não se interponha nenhum obstáculo impeditivo da reflexão; é necessário ainda que seja orientado na direcção da verdade. A iniciação no grau de Aprendiz realiza isto mesmo. A verdade é a luz que brilha no Oriente. Deixamos as joias cá fora, isto é, as nossas convicções, a fim de que elas não se interponham entre o espelho e a luz da verdade; passamos pelas três regiões elementares, onde nos libertamos das sujidades mentais pelo fogo, das sentimentais pela água, das instintivas pela terra. Por fim, o nosso espírito, tornado uma matéria límpida perfeitamente disponível, é voltado para o Oriente. Pelo compromisso feito à maneira dos Maçãos, o espírito está pronto. Quando o espírito está pronto, a luz aparece.

Nos dias seguintes à minha iniciação aconteceu aparecer-me esta interrogação: “Muito bem. Recebi do Oriente uma centelha de luz que agora reside algures no meu ser. É como uma semente, como o grão de mostarda de que fala Jesus Cristo no Evangelho. O que é que devo fazer para que essa semente de luz germine e se transforem numa árvore, numa grande árvore em cujos ramos voam as aves do Paraíso?”

Não respondo a esta pergunta porque não sei responder. Ponho-a à consideração dos mestres. “A arte é longa e a vida breve.” Ars longa, vita brevis. Este lema, que os iniciadores de Goethe extraíram de uma ode de Horácio para a carta de aprendizagem do grande poeta alemão, se eu pudesse adoptá-lo fazendo-o meu, sentir-me-ia simultaneamente infeliz e feliz. Infeliz porque tenho 71 anos e a morte à minha frente; feliz porque tenho três anos e à minha frente a vida. Aos Mestres desta respeitável Loja, que me iniciaram, a devo. Muito obrigado. 

 

António Telmo