DOS LIVROS. 75

21-08-2024 00:00

Da Língua Portuguesa

A superstição atribui às palavras poderes mágicos. A moderna filosofia liga a esta superstição apenas um valor histórico e etnográfico, enquanto pretende explicar a crença que lhe corresponde em função de categorias próprias de uma mentalidade primitiva. No entanto, o homem civilizado admite a eficácia das palavras na esfera das acções puramente psíquicas, como acontece com os católicos perante os sacramentos, mas nega-a no domínio dos corpos, in extremis, no domínio dos corpos metálicos. Está, porém, a filosofia moderna, directa ou indirectamente, relacionada com aquelas correntes mentais que combateram o catolicismo como superstição. Só uma doutrina contrária à cartesiana, que admita, como por exemplo a dos aristotélicos, que a alma é a forma do corpo, referirá ou há-de referir a palavra ao seu mais alto grau de poder, fazendo seguir-se a um movimento subtil uma modificação do corpo. Verificamos, de facto, que os corpos se alteram, mas tão lentamente e segundo leis tão conhecidas que nos parece absurdo supor no processo qualquer acção de natureza mágica. As palavras «Abre-te Sésamo» têm de ser imediatamente seguidas do fender do rochedo, a pedra tem de transmutar-se instantaneamente em ouro.

É uma triste situação nossa esta de portugueses de nos vermos obrigados a relegar para a poesia o estudo de tão altos problemas. Ali, tudo é admitido, até porque se não toma a sério. Por influência dos positivistas, dando a este termo a máxima extensão, o homem português procede como um ser duplo, cindido entre a «razão» e a «imaginação» e terá de ir buscar à autoridade de uma disciplina estrangeira a convicção de que lhe é permitido meditar em prosa quando verdadeiramente lhe importa. Assim, neste passo, é a Freud que recorremos.

O descobridor da psicanálise era um racionalista, que teve sempre o cuidado em substituir os termos por que tradicionalmente se designam os elementos e as forças da vida psíquica por palavras aceites no domínio científico. Se soubermos, como ele nos ensina sobretudo na sua Interpretação dos Sonhos, desdobrar o que foi dobrado, extrairemos talvez dos seus livros muito mais do que uma explicação sexualista do homem, segundo o monismo antropológico que vulgarmente lhe é atribuído. Em termos aristotélicos, dir-se-ia que se a «libido» constitui a causa substancial, o conhecimento é a finalidade de que a palavra é o princípio formativo. Com efeito, o elemento filológico é fundamental em Freud. A palavra actua entre o inconsciente e o consciente, de tal modo que é pela atenção aos seus movimentos que se explicam os actos falhados, as nevroses, os sonhos –, enfim, toda a vida psíquica do homem e da mulher.

Pondere-se a importância de tudo isto. Em primeiro lugar, as línguas não serão, como se tem querido, instrumentos quase físicos, ou, pelo menos, tão relacionadas com certos mecanismos fisiológicos que se possam estudar, na sua natureza e evolução, dentro dos quadros fonéticos da filosofia alemã; não serão, em segundo lugar, sistemas de expressão de ideias ou de emoções, conforme querem os gramáticos e os estilistas de formação germânica; e estarão, por conseguinte, muito mais desligadas das funções cerebrais do que pensam quantos se agarram ainda a uma fisiologia ultrapassada. Sem dúvida que, de uma perspectiva positivista, a palavra se vai afastando do seu condicionalismo brutamente corporal, mas ficará sempre presa a um complexo de determinações físicas. Evidente é, por outro lado, que algo se passa como se tal relação (do «logos» com a «carne») fosse inevitável. Contudo, Freud veio mostrar que, até no homem natural, a palavra tem uma actividade que não pode ser explicada simplesmente por aquele condicionalismo físico. Actua como uma força metapsíquica, como um agente invisível.

É o que se depreende da leitura astuta dos seus livros, principalmente da sua interpretação dos sonhos. Não nos referimos somente ao facto de pronunciarmos e ouvirmos frases enquanto dormimos, mas sim ao processo de elaboração dos sonhos – do seu conteúdo latente para o seu conteúdo manifesto –, mediante tropos, que são, como se sabe, os modos fundamentais de actividade daquela energia a que os gregos chamaram logos e os latinos verbum. Dir-se-á que, se nem sempre dizermos ou ouvimos palavras, sempre durante o sono as agimos.

Como se depreende de quanto deixamos escrito, por logos ou verbum não entendemos aqui a expressão de ideias ou emoções, mas o poder sem o qual os instintos e os sentimentos nunca se transformariam em pensamentos, impossibilidade que caracteriza precisamente a vida animal, em que o instinto, no insecto, e o sentimento nos mamíferos, é logo imediatamente realizado todo no todo carnal. Dir-se-á, até, que esse poder é o pensamento que actua na maioria dos homens como algo de inconsciente e, nalguns, talvez nos artistas da palavra, como uma actividade que se pode por vezes dirigir. Concluindo: o modo como o espírito dispõe da metáfora durante o sonho e de todos os processos de transformação verbal estudados pelos estilistas, é o sinal de que existe uma «lógica subterrânea» que constitui, quanto a nós, o elemento fundamental de que a razão se apropria para ser ela própria. Antes de prosseguir, importa, porém, desfazer um equívoco corrente quanto à razão e ao racionalismo.

A distinção entre racionalismo e irracionalismo costuma referir-se à linguagem. Assim, uma linguagem que utilize os termos próprios das coisas, despindo-se de figuras e reduzindo os tropos ao movimento mais simples, seria o modo de expressão do racionalismo. Este ideal da inteligência humana só é conseguido na matemática, pelo que, segundo alguns autores, só a razão matemática merece o nome de razão. Os elementos das matemáticas são as substâncias fixas e as operações que se compõem entre si são relações extrínsecas de comparação. Neste sentido, a razão humana fica limitada ao domínio da quantidade. Por isso nos parece que, se quisermos transcender esta categoria, teremos de admitir outras formas de razão e é o que, de facto, se tem verificado entre nós, como, por exemplo, a «razão animada» de Álvaro Ribeiro e a «razão experimental» de Leonardo Coimbra.

Os nossos poetas situam-se, inocentemente, do lado do irracionalismo. Para eles, a linguagem poética – a sua linguagem –, com as suas estruturas metafóricas, é imediatamente distinta da linguagem da razão, senão oposta. Na medida, porém, em que os poetas, de acordo com um falso bergsonismo[1], defendem, como o fez Pascoaes, maior projecção e amplitude cognitivas para a poesia, recorrem logo a termos como inspiração ou intuição, contrapondo-as à inteligência como uma faculdade a outra faculdade. Bastar-lhes-ia, contudo, observar que onde quer que o homem escreva, fale ou pense, logo surge o adjectivo e o verbo, sob pena de se ficar mudo ou fascinado pelas imagens fixas que compõem o ser. Este envoútement corresponde ao que, num plano mais profundo, Pascoal Martins chamou o êxtase de Adão.

A uma razão concebida como actividade do «verbo» poder-se-ia muito bem chamar «razão poética»[2]. Quer dizer, uma linguagem não é irracional por ser constituída por tropos; são, pelo contrário, os tropos que a tornam eminentemente racional. Neste sentido, o que está fora da razão é tudo quanto o verbo, entendido concretamente como logos, como «palavra», ainda não é capaz ou nunca será capaz de apreender. Eis porque muitos pensadores, vendo no homem e na palavra algo de transitório, algo por que se passa, procuram a raiz de onde irrompe o conhecimento num ponto de identificação do espírito mais profundo do homem com o espírito universal e admitem uma espécie de visão que é imediatamente dada como ponto de partida do autêntico filosofar[3].

O progresso da razão dependerá, pois, entre nós, dos estudos de língua portuguesa, particularmente de estilística da língua portuguesa, ocupação que, depois de António Feliciano de Castilho, tem sido preterida pelos estudos que aplicam à nossa as categorias das línguas estrangeiras. A índole ou o génio de uma língua reside, sem dúvida, em mais de um aspecto, mas parece-nos particularmente importante a atenção ao modo como se realizam as assonâncias e as aliterações, os movimentos das vogais e das consoantes e como, desses movimentos, resultam os tropos que transformam as imagens. Já Leibniz escrevia a um nobiliarca do seu país: «Gostaria, senhor, de ver-vos descer mais, até aos movimentos indiscerníveis da mente, para surpreender o maravilhoso uso que podemos dar às minúcias da língua.» Neste sentido, e como ponto de partida, não serão certamente de descurar os adágios e os provérbios, as adivinhas e as anedotas, as lengalengas, os versos verdadeiramente inspirados.

O leitor já reparou que temos orientado a reflexão no sentido de encontrar uma teoria da palavra, pelo que não cabe pôr, neste escrito, o que só pode ser dado depois de demorados e subtis estudos. Queremos falar das características da língua portuguesa. Essas características hão-de, porém, referir-se ao que já indicámos como o génio da língua. As diferenças que definem o português perante as outras línguas não serão, desta perspectiva, marcadas como acidentais ou meramente exteriores e, como tal, dependentes de qualquer processo evolutivo mecânico, mas devem ser pensadas relativamente à actividade de um espírito régio interior.

É o que é difícil de admitir, quando da vaga alusão mitológica transitamos para a determinação concreta e real de um génio. Se em vez de génio dissermos anjo, o leitor dirá que divagamos mais ainda, mas se substituirmos génio por espírito e espírito por natureza, mostrar-se-á ingenuamente menos céptico. A expressão «natureza da língua» parecer-lhe-á muito mais admissível. Todos lemos a Vida das Abelhas da Maurice Maeterlink e lembramo-nos de como o escritor fazia depender a maravilhosa certeza dos movimentos dos insectos de um misterioso centro invisível —, o espírito da colmeia, pars divinæ mentis.

Sem esta hipótese de uma inteligência secreta, muita coisa ficará por explicar, como, por exemplo, a origem da língua portuguesa. A tese oficial de que provém do latim, permanece, embora houvesse quem a discutisse com atendíveis argumentos. Do nosso ponto de vista, pensamos que seja qual for a língua de que surgiu a nossa, (latim, árabe ou hebreu), o que importa surpreender é o espírito em actividade, formando e moldando a matéria plástica de que se apoderou. Já Joseph de Maistre, nos Serões de São Petersburgo, apontava na assimilação dos estrangeirismos importados um exemplo de como «o génio da língua devora as palavras».

Outro ponto digno de ser atendido é o das relações que se estabelecem entre os indivíduos e as línguas que falam. Começa hoje a admitir-se que uma criança, nascida em país estrangeiro, e a quem os pais não ensinaram a sua própria língua, vem mais tarde a revelar curiosos sintomas de estupidez, o que se verifica facilmente quando na família existem outros filhos mais velhos cuja infância decorreu na pátria original. Não sabemos se isto se deve relacionar com a não menos curiosa distorção mental observável nas pessoas que, por snobismo social, subordinam a cultura portuguesa a uma cultura estrangeira e que frequentemente intrometem numa conversa em idioma pátrio frases ditas em língua estrangeira. Com efeito, e conforme vimos, a acção de uma língua não se exerce apenas à superfície. É uma relação orgânica. E cabe perguntar, neste momento, se um homem português sonha como um homem estrangeiro. A pergunta, por insólita, parece idiota. Nós, pelo contrário, achamo-la comparável àquela que o tribunal eclesiásticos que julgou Joana d'Arc fez à Santa e que consistia em saber em que língua Deus se lhe tinha dirigido, quando ouviu as vozes interiores.

 

António Telmo

 

(Publicado em Filosofia e Kabbalah seguida de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, 2015)

 



[1] V. António Quadros, “Ainda sobre a Intuição”, Diário Popular de 5 de Novembro de 1964.

[2] Não é ainda razão mágica, porque o poder não é do homem mas actua no homem.

[3] José Marinho, Teoria do Ser e da Verdade.