DOS LIVROS. 78
Abertura
(excerto)
Em 30 de Março de 1971, Álvaro Ribeiro escrevia-me uma carta donde destaco as seguintes linhas:
Espero publicar um opúsculo intitulado “Mestrado e Magistério”. É um escrito de ocasião, fogoso e piramidal. Protesto contra o mal que se diz na imprensa sobre ensino esotérico e exotérico. Não sei desistir. Pinharanda Gomes pôs em foco o meu nome ao editar “Liberdade de Pensamento e Autonomia de Portugal”. A querela da filosofia portuguesa ainda não terminou. Quando se pronunciará sobre o problema, António Telmo?[1]
Com a habitual precisão no uso dos termos, mostra que “esotérico” é um relativo. Relativo a exotérico. A absolutização do termo por homens com a responsabilidade dum René Guénon levou a confundir exotérico com vulgar, o que torna, neste caso, inentendível que se proteste contra o mal que se diz na imprensa sobre ensino… exotérico. O movimento da filosofia portuguesa que Álvaro Ribeiro criou em 1943 é um movimento exotérico. Compreende-se toda a importância da adjectivação quando o comparamos com o movimento contra a filosofia portuguesa, urdido por António Sérgio. Por muito valoroso que consideremos este, não nos é lícito caracterizá-lo como exotérico, porque não é relativo a nenhum esoterismo, em suma não é portador de um ensino encoberto.
A referência a Pinharanda Gomes no contexto, deixa-nos em dúvidas sobre o papel que este notável polígrafo desempenha na querela. Pela minha parte, pretendo com este livro participar na discussão, animado pelas palavras que Álvaro Ribeiro me enviou, quando publiquei sete anos depois a Gramática Secreta da Língua Portuguesa:
Em tempos dediquei um volume de “Estudos Gerais” a quem quisesse dizer-se meu discípulo. Comecei pelos estudos triviais de gramática. Vejo agora com alegria que só o António Telmo chegou a prestar-me atenção.
E mais adiante:
Só o António Telmo, figurando na Árvore Sefirótica a sua doutrinação fonética, parece respeitar a essência do que para Pitágoras, e até para Euclides, se chama verdadeiramente um teorema, apesar da indignação de Hegel no seu grande livro de “Lógica”.
Na referida carta de 30 de Março de 1971 convidava-me a falar sobre “Filosofia e Kabbalah”, dizendo assim:
Ser-nos-ia agradável que António Telmo viesse a Lisboa falar sobre “Filosofia e Kabala”. Sei que hoje conhece bem esse assunto, especialmente na feição sefardim. Lembro-me das nossas conversas sobre interpretação kabalista das doutrinas de Freud sobre a polaridade dos sexos e a mediação da libido, o prazer e a morte. Ultimamente, ao retocar nuns textos de Kant, verifiquei que a psicanálise descobre nos estudos do grande filósofo a profundidade do subconsciente judeu. Não deverá ser novidade para a erudição alemã. Certo é, porém, que o pietismo cristão em que o filósofo foi educado pela mãe admite a tradução para o hassidismo polaco. A leitura da obra de Martin Buber permite a fertilidade da comparação.
Kant dá, efectivamente, expressão laica a certas teses do judaísmo. Fichte, Schelling e Hegel são mais goim, pagãos ou cristãos. É útil rever e reler a obra de Kant.
Consciente ou inconscientemente, o nome de Kant funciona aqui como um termo de substituição para o nome de Álvaro Ribeiro. Propõe-me falar sobre “Filosofia e Kabbalah” e logo, depois de referir o carácter sefardim dos meus estudos e das nossas conversas sobre a polaridade dos sexos (tese fundamental da sua filosofia), surge a lembrar Kant, a subconsciência judaica do grande filósofo e a possibilidade de converter o pietismo cristão de educação maternal no hassidismo askenazim. Quando lemos, na Dedicatória do “Livro de José Régio”, «quanto a minha mãe devo na formação dos meus melhores sentimentos e, neófito, ter aprendido as primeiras orações cristãs, para saber a existência de Deus», o paralelismo já não oferece quaisquer dúvidas e logo compreendemos que a piedade cristã em que o filósofo Álvaro Ribeiro foi educado pela mãe admite a tradução para o sefardismo peninsular. Não ignorava, de certo, que o seu mestre Leonardo Coimbra, quando iniciado na Ordem Maçónica, escolhera para si o nome de Kant. Na verdade, o filósofo alemão obsidia o criador do Criacionismo contra quem demoradamente luta, em numerosas páginas dos seus livros. Dada, porém, a identificação consciente de Leonardo com Kant, a melhor imagem para figurar essa luta é a de Jacob com o Anjo. O autor d’A Alegria, a Dor e a Graça, de um livro que ostenta na sua arquitectura as três colunas da Árvore Sefirótica, converte o sefardismo em cristianismo; Álvaro Ribeiro procede segundo o movimento inverso, interpretando, como veremos, o catolicismo nos termos da Kabbalah. Ambos têm por alvo ou enteléquia aquela síntese que é a essência da filosofia portuguesa.
Em 30 de Março exortou-me o Amigo a falar em Lisboa sobre “Filosofia e Kabbalah”. Chegado o momento de o fazer, cumpro o que me é distribuído, e, depois de ter lido e relido a obra de Álvaro Ribeiro, apresto-me a compor um livro com o verdadeiro título, consciente ou inconscientemente sugerido na carta.
Uma “estranha inquietação” se apossa de mim quando me disponho a fazê-lo. É este um sentimento misterioso muito conhecido dos pensadores alemães, que para ele têm uma palavra intraduzível nas outras línguas: Unheimlichkeit. Heimlich é o que é íntimo; unheimlich essa estranheza inquietante. Schelling define unheimlich «como o que deveria ficar escondido, secreto, mas se faz manifesto».
O medo indistinto ao sobrenatural que assiste no íntimo de uma comunidade esotérica ou o receio «dos homens com face de demónio», qual teria sido o motivo que levou Álvaro Ribeiro a explicitar o seu judaísmo somente aos 64 anos num livro que trazia projectado «há mais de três decénios»?
Refiro-me à Literatura de José Régio. Ao escrever este livro, o autor pensava fechar com ele a sua carreira de escritor e também que a sua vida chegava ao fim:
Eis, enfim, chegado o último dia, termo desejado de um caminho doloroso e dolorido.
O Livro de José Régio é o décimo na obra do filósofo, caso não contemos os dois opúsculos sobre Sampaio Bruno e sobre Leonardo Coimbra. Constitui a chave ou fecho dos outros nove. Desempenha, realmente, nessa obra, o papel de “Malcuth”, décima sephira, representativa da Shekinah e da Comunidade Judaica. Logo a seguir à sua publicação, Álvaro Ribeiro casa. Escreverá ainda dois livros, o primeiro Uma Coisa que Pensa, dedicado à Maria Júlia que o convenceu a «continuar a manifestar o seu amor pela Pátria», sinal de que não fora isso e a obra teria terminado com o livro da Plenitude. O título Uma Coisa que Pensa é extraído de Descartes, mas significa, para além das pazes com o cartesianismo original, a condição do homem, uma coisa que está para aqui que pensa, reduzido ao pensamento, nele encontrando o valor, e à extensão dolorosa do corpo. Procuramos em vão nesse livro a indicação da bibliografia do autor. Somos remetidos para a bibliografia assinalada por Pinharanda Gomes, como se o filósofo já se considerasse morto ou passado à história.
Dois anos depois de Uma Coisa que Pensa (1975) começará a publicação das Memórias de um Letrado, em três volumes, dos quais o último tem a data de 1980. Um ano depois morre. Neles lembra e recorda o itinerário do seu pensamento, tal como se foi formando e desenvolvendo a partir do magistério de Leonardo Coimbra. Memórias de um Letrado é a cifra de Memórias de um Kabalista, de quem conhece os segredos subtis das letras do alfabeto.
É impossível compreender dentro das relações humanas habituais a hostilidade que Álvaro Ribeiro sofreu dos meios intelectuais em que foi obrigado a viver. Era um diplomata. Tinha o segredo da duplicidade, que é, como se sabe, o saber falar a língua do outro. Nunca agrediu ninguém nos seus escritos, com excepção para José Marinho, aliás o seu grande Amigo de toda a vida, porque, consciente do próprio valor, era incapaz de inveja.
Também a hostilidade para com o povo judeu constitui um enigma que os historiadores e sociólogos não conseguem decifrar. Culpam-no da morte de Cristo, mas ainda muito antes de Cristo tinha já sido perseguido e humilhado. Em Portugal, o enigma assume a mais evidente singularidade.
António Telmo
(Publicado em Filosofia e Kabbalah seguida de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, 2015)
[1] N. do O. – As cartas de Álvaro Ribeiro para António Telmo estão publicadas em Cadernos de Filosofia Extravagante: Interiores, Zéfiro, Sintra, 2012, pp. 132-137.