DOS LIVROS. 65
Memórias cruzadas
– O que te traz tão preocupado, Amigo?
– Se eu te dissesse que gostaria de escrever um livro que fosse absolutamente sincero e, porque me sinto incapaz de fazê-lo, uma grande tristeza me invade e caio na mais estúpida das apatias…
– A apatia! Eis o problema. Freud recomendava, há um século, que se ingerisse uma pequena quantidade de ópio e que isso era suficiente para adquirir a energia que nos faz prosseguir confiantes no caminho da Ciência.
– Eu gostaria que o simples pensamento de Deus me recuperasse para esse caminho. Mas onde é que Deus se encontra neste momento?
– O bispo de Kars respondeu a análoga pergunta feita pelo pai de Gurdjieff que «Deus estava algures a construir uma escada para que os homens subissem por ela».
Estava com Álvaro Ribeiro no café da Brasileira do Rossio e ambos ouvimos claramente esta conversa que se desenrolava numa mesa ao lado, próxima de nós. Esperávamos pelos outros do grupo que ali se reuniam connosco às quintas-feiras: o José Marinho, o Eudoro de Sousa, o Orlando Vitorino e mais dois ou três, mas certamente só estes de que refiro os nomes estavam na nossa mente. Há meia hora que ali estávamos e Álvaro Ribeiro mantinha-se calado, o que me punha nervoso, com a sensação estúpida de estar a mais. Os dois homens, ao nosso lado, levantaram-se e dirigiram-se ao criado para pagar os cafés.
– Vão ver se a escada já está feita – disse Álvaro Ribeiro sorrindo e ironizando, mas logo recuperou a indiferença que espelhava no rosto e na atitude do corpo.
– Não é vulgar ouvirem-se daquelas conversas – tentei eu, timidamente.
– O António Telmo já defrontou o problema da apatia? Só o homem sente tédio; os animais ignoram-no e os homens inferiores também.
A minha memória correu para a imagem da minha namorada, uma colegial que conhecera há três semanas.
Andava divagando pelo Chiado, à procura, pelos cafés, de alguém conhecido para conversar. Era a hora da saída dos empregos. As pessoas pareciam todas apressadas. Diante de mim, que me encostara a uma parede, passou uma colegial, com uma bata branca. Outras tinham passado já. Eram alunas da Escola Comercial que, ao tempo, funcionava na Calçada do Combro. De repente, tive a sensação esquisita de já ter vivido aquele momento, nos seus mínimos pormenores, aqueles carros a passar, aquelas mesmas pessoas, aquela mesma rapariga que eu, sabia-o muito bem, nunca tinha visto antes.
O Eudoro de Sousa foi o primeiro a chegar: um homem atarracado, de rosto socrático. Sentou-se abrindo muito as pernas, como fazem todos que têm uma grande barriga. Abriu a boca bocejando. O Álvaro Ribeiro trocou um olhar cúmplice comigo, acompanhado pelo mesmo sorriso de há pouco.
– Estávamos a conversar sobre a “apatia”. O Eudoro não quererá dizer qualquer coisa aqui ao nosso amigo sobre o modo como Aristóteles ensina a despertar o pathos nos homens embrutecidos?
– A gente do povo costuma arcar[1] a apatia com um manguito. Mas você prefere à baixa magia do povo a alta magia da tragédia grega?
Exemplificou com o gesto. A sua figura tomou certa comicidade que lembrava certos bonecos de barro pintado que se vendem nas feiras. Álvaro Ribeiro pareceu ler no meu pensamento:
– … e da comédia grega. Ali vem quem sabe do assunto.
O José Marinho entrava no café, ladeado do A. Quadros e do A. Botelho. A qual dos três se referia Álvaro Ribeiro? Mas logo que se sentaram, começou-se a falar de outra coisa. Deixei de os ouvir. O que me preocupava era o problema da apatia.
Mais tarde, haveria de ler em Gurdjieff que toda a humanidade sofria presentemente de apatia, tanto lhe fazendo que existisse isto como aquilo, e que isso se devia à ininterrupta perda de energia do nosso planeta causada pela produção gigantesca de luz eléctrica. Falei nisso ao Max Hölzer.
– Ainda é cedo para que você entenda a coisa – respondeu-me.
Tinham passado trinta anos sobre a reunião que evoco no café da Brasileira.
António Telmo
(Publicado em Capelas Imperfeitas - Dispersos e Inéditos, 2019)
[1] N. do O. – Palavra de muito difícil percepção no original manuscrito. Admitimos igualmente a hipótese de António Telmo haver escrito “assar”.