DOS LIVROS. 48
Afonso Botelho, o filósofo da saudade
Esta homenagem a Afonso Botelho é prestada em saudade.
Com uma ou outra possível excepção, todos quantos o homenagearam antes de mim o conheceram pessoalmente ou foram, à distância, seus amigos. Temos saudades do Afonso Botelho e não de Afonso Botelho, do Afonso Botelho vivo. A morte tornou impossível vê-lo onde ele está agora.
A saudade é sempre do que é vivo e existente, por isso o recurso ao espiritismo é uma anormalidade, uma violência contra a saudade.
Nesta terra onde todos vivem para a perpetuação da carne, comendo e procreando, o sangue, esse fluido vivente, circula pelos corpos voraz e insaciável, mas animando de vida a tessitura dos músculos, dos nervos e dos ossos. Terrível contradição, a que a morte vem pôr fim quando se detém a corrente sanguínea. E então, se nos é lícito imaginar qualquer forma de sobrevivência, o que fica é o fantasma, uma pálida imagem sem diafragma e sem vontade, uma espécie de massa protoplásmica que a nossa recordação gostaria que se revestisse da melhor das formas.
O horror aos fantasmas, ao esoterismo mal entendido vem daqui. Os gregos, como lemos, por exemplo, em Homero, viam o Hades (o Inferno que neles não tinha o mesmo sentido do catolicismo) povoado de pálidas e inanes imagens que vogavam sem consciência no outro mundo. Por isso, eles amavam a vida e o sol que nela brilha.
Ulisses, ao descer aos Infernos, se quis consultar os manes, teve que dar-lhes a beber o sangue de um animal sacrificado. Só assim lhes restituiu a memória e a palavra perdidas, podendo ouvir os sons oraculares.
Esta dependência do sangue que nos faz beber, comer e procrear está aqui transferida para o outro mundo. O mesmo horror habita a nossa terra e a terra dos mortos, só que, aqui, os mortos julgam estar vivos na ilusão de uma consciência automatizada, que o mundo moderno acentua progressivamente.
Mas nós vemos o Afonso Botelho em saudade. Vemo-lo neste ou naquele lugar onde estivemos com ele. Era um homem que, para além da sua condição de mortal nascido da carne, amava e pensava pelo espírito, progenitor da sua alma, segundo o evangelho.
É que os heróis, se recordamos os de Carlyle, não são somente aqueles que se distinguiram pela guerra das armas ou pela audácia das navegações marítimas. Estes merecem o nome de heróis quando a guerra e a navegação foram feitas para manifestar a glória de Deus. Por isso a literatura, quando o escritor pensou heroicamente, é igualmente uma guerra e uma navegação. Foi o caso do Afonso Botelho.
Os gregos não punham os heróis no Hades entre as pálidas imagens dos mortos. Imaginavam-nos morando nas Ilhas Bemaventuradas e, o que é extraordinário, envolvidos de um corpo sensível como o nosso, com a consciência e a vontade inalteráveis, mas sobrenaturalizadas. No corpo de luz que habitavam e que lhes servia de carro conservava-se o diafragma com tudo o que a etimologia desta palavra implica.
Falei em corpo de carne e agora falo em corpo de luz. Exconjurei os fantasmas, erguendo a minha espada, a minha e espero que também a das vossas inteligências.
É que o corpo de carne, formado pelo ininterrupto solve et coagula do sangue, movimento de vida constantemente ameaçado de morte, aparece-nos, depois da queda, como uma degradação do corpo de glória de Adão, o senhor do Paraíso.
Entre um e outro há apenas uma diferença de grau. Como sabeis, as plantas absorvem a energia solar que as torna ascendentes e fototrópicas, compondo a forma surpreendente da flor; os herbívoros vão buscar às plantas essa mesma energia; os carnívoros devoram os herbívoros apoderando-se dela ou devoram-se entre si arrastados pelo sonho turvo da vida. Mas a energia solar é uma metáfora da energia transcendente do espírito. Esta, essa, aquela capta-se pelo pensamento articulado em orações. É a energia espiritual, que não devemos conceber fantasmaticamente, mas como a própria luz que é o Logos, de que nos fala São João no Evangelho.
É uma luz que, pela imaginação, é possível projectar na própria corrente sanguínea e subtilizá-la, aquela luz invocada por Guerra Junqueiro na Oração e que, não obstante a sombra do monismo a que dá abrigo, a vemos progredir da treva para o pensamento.
Para o Afonso Botelho, que amou, pensou e saudou lealmente o Rei Supremo, escrevi este epitáfio, que publiquei no Setubalense:
“Partiu mais um.
Como é próprio da fase outonal do ciclo, vão-se, uma a uma, desprendendo as folhas da Árvore que está plantada no centro de Portugal e que é, simultaneamente, a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento.
Ei-la, despida mas não morta, tal choupo na margem da corrente do mundo político-económico, com duas ou três folhas ainda presas, lembrando a Primavera que nunca foi. Reverdescerá um dia, transmutada em árvore de folha perpétua, como o “verde pinheiro” de D. Dinis.
Entretanto, junto à corrente, choramos como as irmãs de Faéton, nela precipitado por não ter sabido conduzir, jovem e louco, o carro de seu Pai. “Menina e Moça me levaram para longe da casa de meus pais”. Portugal é o país do verdadeiro exílio, porque é quando estamos nele que dele temos saudades. Estranho paradoxo! Pensemos nisto.
Partiu mais um. Este chamava-se na terra Afonso Botelho. Quem o conheceu e viu não pode esquecer as linhas da sua nobre figura que o assemelhava a uma “bouteille”, direita e hierática como a do oráculo de Rabelais, ou a D. Duarte sobre a sela do cavalo olhando os longes da filosofia. Uma garrafa que os nautas do mar desconhecido lançaram à água encerrando preciosos manuscritos é tanto como a figura de um rei montado no seu cavalo magnificamente respeitável. Quem há, porém, aí capaz de decifrar essa carta de marear que é a Teoria do Amor e da Morte?
Direitos e sérios, meditativos e saudosos como ele, contemplemos demoradamente o epitáfio:
“Aqui jaz Afonso Botelho, filósofo insigne. Porque havia destino cumpriu o destino; porque há o espírito, foi livre. Paz à sua alma!”
António Telmo
(Publicado em Viagem a Granada, 2005)