DOS LIVROS. 47

17-04-2016 00:58

Rafael, o grande solitário

 

O grande escritor francês Léon Bloy, que a si mesmo se designava por o Pobre, por este modo fazendo a imitação de Cristo, estava um dia no meio de mendigos, à saída da missa em Notre-Dame, estendendo como eles a mão à caridade. Passou um poderoso, o ministro das finanças ou coisa no género, que o reconheceu no preciso momento em que lhe ia entregar uma mísera moeda. Ficou espantado de ver tão ilustre personagem a pedir esmola:

– Você, Léon Bloy, aqui?

– Preciso de comer.

– Mas há instituições de caridade...

– Só acredito nas instituições de caridade quando elas forem dirigidas por pobres. Vá! Passe para cá o dinheiro!

Esta cena poderia ter-se passado com o Rafael Monteiro, à saída da missa no Chiado. A sua altivez perante os reverendos, isto é, a sua irreverência, juntamente com o seu inexcedível talento de produzir choques de frases que fazem ver, estão bem patentes nesta história que ele próprio me contou.

O famigerado escritor marxista José Cardoso Pires, por ter ouvido falar do solitário no Castelo de Sesimbra, talvez ao Agostinho da Silva, bateu-lhe um dia à porta. Não chegou, porém, a entrar, em consequência do seguinte diálogo:

– Sou o Cardoso Pires... O escritor.

– Sim... Deixe ver se me lembro. O senhor não escreveu um autobiografia?

– Não, nunca escrevi nenhuma autobiografia.

– Ora essa! Então não foi o senhor que escreveu Eu, Burro de Pé?

Este, como outros confrontos, criaram-lhe muitos inimigos. O francês Léon Bloy também os teve em grande quantidade. Ambos católicos, tinham de comum também a sua irreverência em relação à Igreja. Eis algumas frases bem expressivas disso, tiradas de um “depoimento” inédito, agora publicado em livro:

“Fui criado no «seio da Igreja» como soe dizer-se. E na catequese, com um lapitos, riscava a palavra «Romana» na frase do catecismo: «Católica, Apostólica, Romana». Entendia no meu senso ingénuo que deveria lá estar «Portuguesa», pois em Portugal eu nascera e não em Roma. Mal sabia, então, como era importante a verdade revelada pela minha infantilidade.”

“Na frequência do templo e no convívio com os sacerdotes, aprendi o pecado, e bem cedo me tornei pecador, aos olhos da Igreja. Na alma radiquei imenso medo de Deus. «Não faças isso, que Deus te castiga», «Deus não te perdoa se fizeres assim», e estas e outras intimativas (pavorosas para a minha alma ingénua) destruíram o que em mim era pureza, amor e esperança em Deus. Mas ensinaram-me que pela confissão o sacerdote me absolvia dos pecados cometidos. E eu vi no sacerdote um ente maior e melhor do que Deus.”

É um depoimento admirável que ele sim deveria figurar à cabeça deste livro como apresentação do autor. Quando, adiante, o leitor o percorrer com os olhos do espírito, verá como é nobre e elevado o homem que o escreveu. Ali se mostra, porém, apenas um aspecto dos muitos que constituíam a sua natureza. Um aspecto importantíssimo, pois, ao dar-se nesse depoimento como um pobre e um louco (“sou pobre, eufemismo com que os meus amigos, piedosamente, ocultam a verdade da miséria em que vivo”) e, ao mesmo tempo que pobre e louco, e por isso mesmo «um milionário de Deus», considera-se um escolhido. Recordo-me bem do entusiasmo com que me falava do «pobre» que, no famoso quadro de Gregório Lopes, da Misericórdia de Sesimbra, se recolhe num manto de Nossa Senhora. Era como se visse nele a si próprio entre os grandes deste mundo, mas superior a todos porque o interpretava como um «iniciado» em qualquer Maçonaria do século XVI, coisa da qual lhe parecia sinal certo o joelho descoberto da personagem.

O quadro de Nossa Senhora da Misericórdia era uma das suas grandes paixões. Tanto assim que um dia me pediu para irmos ambos a Lisboa convidar o Almada Negreiros a falar sobre ele na Biblioteca Municipal, de que eu, então, era director. O «consagrado» pintor recebeu-nos cordialmente, embora dizendo que não, ao que pedíamos, por se encontrar velho e doente. Morreu pouco tempo depois. Se não fosse sentir-se impedido fisicamente, não deixaria de aceitar o convite, porque amava muito Sesimbra, onde tinha estado muitas vezes vinte anos atrás. E quando o Rafael Monteiro lhe observou que, se ali fosse agora, a iria encontrar muito mudada porque o turismo a vinha continuamente estragando, fitou nele os seus grandes olhos negros e proferiu estas palavras memoráveis:

– A beleza de Sesimbra, meu Amigo, nem uma bomba atómica seria capaz de a destruir. 

A resposta veio imediata:

– Que venha a bomba atómica! Que rebente com o turismo para que se veja melhor a beleza.

O Rafael Monteiro comparava o turismo àquela praga dos gafanhotos que assolou o Egipto dos tempos bíblicos. Via-os vir encosta abaixo camioneta após camioneta, carro após carro, aos sábados, aos domingos, em todos os dias da semana; via-os cobrirem campos e praia, alongarem-se em longas filas à porta dos restaurantes, devorarem tudo por onde passavam. Era como se lhe invadissem a casa, a sua querida Sesimbra, onde tinha nascido, crescido, e haveria de morrer. Retirava-se para o Castelo. Lia, escrevia, pensava, recebia os que eram capazes de o compreender e, excepcionalmente, de o ensinar.

Tinha uma vintena de gatos. Ele mesmo tinha o temperamento de um felino. A alma bem encaixada no corpo, serena e firme, simultaneamente distraída e atenta, sempre pronta a formar o salto com a rapidez do raio, quando de súbito alguém lhe invadia o território da sua independência.

Mas, ó coisa espantosa!, este homem que não se preocupava com o dia de amanhã, com o que pudesse comer no dia seguinte, teve uma fase da vida em que lhe caiu do céu muito dinheiro. Foi pelo acaso de uma conversa ouvida no café, de mesa para mesa. Por ela soube de um terreno imenso que estava à venda por tuta e meia. Não tinha tuta e meia. Associou-se com quem a tinha, o seu grande amigo Ernâni Roque. Compraram-no e depois venderam-no a peso de oiro. Couberam-lhe mil e tantos contos, que eram na época muito dinheiro. Os amigos, entre os quais este que escreve estas linhas, exultaram de alegria por o verem liberto da miséria. Aconselharam-no a aplicar o dinheiro, a tirar dele um rendimento mensal, de modo a não se preocupar mais com os aspectos materiais da vida. Como se enganavam e como eram pouco inteligentes! Assim com o dinheiro é que ele se preocuparia com os aspectos materiais da vida. Só sabia ser pobre. Só sendo pobre era livre. Só sendo livre era «um milionário de Deus».

Os mil e tal contos foram gastos, na sua maior parte, em obras na casa do Castelo, onde vivia. Fê-lo em memória da mãe, já falecida. Disse-me que queria que ela tivesse uma linda casa. Acreditava ou sabia que ela continuava a viver ali com ele.

Parece que Marcelo Caetano, segundo sabemos pelo que escreveu António Reis Marques em “O Sesimbrense”, terá ficado deveras impressionado ao ler uns textos do Rafael Monteiro que lhe vieram parar à mão. Fez com que o trouxessem até ele em Lisboa e disse-lhe mais ou menos o seguinte: “Apreciei muito os seus escritos! Você já é alguém, mas eu gostava que fosse alguém ainda maior pois tem qualidades para isso. Terei muito prazer em tê-lo como meu aluno na Faculdade de Direito. Estou pronto a ajudá-lo.”

Quando ouviu o Rafael dizer que tinha apenas a 4ª classe da instrução primária e, só com isso, não tinha acesso à Universidade, não pôde esconder a sua estupefacção.”

Compreende-se a estupefacção de Marcelo Caetano. É a de quem julga que só a Universidade dá autoridade, isto é, confere o direito de ser autor. O Rafael Monteiro, com a sua instrução primária, teve mais sorte do que o Fernando Pessoa, nem sequer se lhe pôs o problema de ter que desaprender tudo quanto lhe haveriam de ensinar na Universidade. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)