DOS LIVROS. 46

01-03-2016 10:55

111 ANOS DEPOIS: ÁLVARO RIBEIRO, SEMPRE! 

Ciências Ocultas

 

A kabbalah não é uma ciência oculta, é a arte da palavra, – a filosofia. Isto dentro, evidentemente, do pensamento de Álvaro Ribeiro. Ela constitui o centro de convergência das nove “ciências ocultas” que os antigos referiam às Musas. Na árvore do conhecimento o seu lugar é o de Tiphereth, a Beleza.

Num breve escrito amável que abre o livro de Conceição Silva sobre os Painéis de Nuno Gonçalves, Álvaro Ribeiro caracteriza, por estas palavras, o seu pensamento:

 

                        Só as ciências ocultas estabelecem a relação do natural com o sobrenatural. Isto é, a filosofia…

 

Como se vê identifica ciências ocultas e filosofia. O prefácio foi escrito num dos últimos anos da sua vida. Por esta época e a partir de Uma Coisa que Pensa declarava aos amigos que era positivista. E, de facto, podemos seguir no segundo estudo daquele livro e nas Memórias de um Letrado o crescente entusiasmo pela filosofia de Augusto Comte, que culminou na tradução de um livro Reorganizar a Sociedade e no estudo, claramente positivista, que o antecede[1]. Esta aceitação final do positivismo é comparável, pelo efeito[?], à conversão religiosa de Leonardo Coimbra. Houve quem suspeitasse da sinceridade da conversão num homem que toda a vida afirmou a autonomia, a independência e a auto-suficiência da filosofia, só ela capaz de ligar o homem ao sobrenatural, dispensando a intermediação sacerdotal, dada em muitas páginas como o maior obstáculo a essa ligação. Contudo, porque era difícil manter essa dúvida sobre o procedimento dum homem tão franco, leal, corajoso e desassombrado, a maioria dos discípulos e dos amigos viveram com profunda decepção a falta de fidelidade ao pensamento em que se nutriram. Foi semelhante a reacção dos admiradores de Álvaro Ribeiro. Todo o movimento da filosofia portuguesa se fez a partir da crítica aos positivistas, todos quantos seguiram o filósofo podiam ter tomado vias divergentes mas mantiveram sempre de comum a negação incondicional do positivismo. Esta hostilidade parecia-lhes caracterizar a filosofia portuguesa. É por isso de pensar que a aparente catástrofe do pensamento de Álvaro Ribeiro tem, pelo menos, a virtude de nos fazer procurar a verdadeira razão de ser da nossa filosofia, não numa negação, mas em qualquer coisa de afirmativo e que se aplicasse a toda a nossa literatura de pensamento.

Não será mais inteligente pensar que, se Leonardo Coimbra se converteu ao catolicismo e Álvaro Ribeiro se transferiu para o positivismo, é porque, num e noutro caso, catolicismo e positivismo podiam ser interpretados e transubstanciados à luz das próprias filosofias? Não é de crer que um filósofo abandone tudo quanto pensou, é antes de ver no movimento criacionista do pensamento uma actividade sempre presente e vivente que descoisifica para formar novos movimentos. A catástrofe pode ser interpretada como uma anástrofe de que beneficiam os dois termos da relação.

Sendo o entusiasmo pelo positivismo contemporâneo daquela afirmação posta no prefácio ao livro de Conceição Silva, é de conjecturar que a filosofia de Augusto Comte seja um movimento exotérico. O que é que Álvaro Ribeiro tornou visível nos breves escritos que ao tema dedicou? A noção comteana, antes saint-simonina, do Grande-Ser, da Humanidade entendida na sua relação com a décima Inteligência.

Num famoso ocultista, já aqui citado, – Fabre d’ Olivet – lê-se o seguinte:

           

O fluido magnético é o próprio homem universal, posto em movimento por uma das suas emanações. Quanto mais forte é esta emanação, pura, brilhante, mais força, pureza e esplendor tem a emoção. Reflecti seriamente no seguinte. Os homens são reflexos mais ou menos vivos, mais ou menos elevados, do homem universal, em cujo espírito se movem. (La Vraie Maçonnerie 113)

 

Se ligarmos a noção comtista do Grande-Ser a esta doutrina compreende-se que Bruno fale, a propósito, de uma «mescla de misticismo e d’esoterismo»[2]. Anteriormente, na página 65, transcreve estas linhas de um seguidor de Augusto Comte:

 

Em resumo, a humanidade é um ser bem real, cuja natureza composta fez por longo tempo que se lhe não desse fé da existência, hoje em dia cientificamente estabelecida: é o único verdadeiro Grande-Ser, o único verdadeiro Ente-Supremo!, imenso, pois que cobre o mundo; eterno, pois que abarca ao mesmo tempo o passado, o presente e o futuro; todo-poderoso, porque acção inteligente alguma se pode comparar à sua. É da humanidade sobretudo que dependem os nossos destinos; é ela que nos protege contra as fatalidades exteriores ou interiores, que nos defende contra o mal físico, que nos fortifica contra o mal moral. É ela que diminui para nós o peso das imperfeições naturais e que lhes adoça o amargor; é ela cuja acção tutelar, providência única da nossa terra, nos elevou gradualmente das misérias da animalidade aos encantos e à grandiosidade da vida social. Em ela está o nosso apoio, em ela está a nossa força, nela a nossa consolação, nossa esperança e nossa dignidade! Ela é a razão do nosso dever, a condição da nossa felicidade e a salvação do mundo depende do seu advento imediato”. (Q. Rel. p. 65)

 

No segundo estudo dos três que compõem Uma Coisa que Pensa, Álvaro Ribeiro parece aderir a esta doutrina:

 

Curioso é… observar o espírito de negação que se nota na obra de Augusto Comte contra a importância do indivíduo, cuja existência efémera no espaço e no tempo nos preocupa e atormenta, para subordinar o homem singular ao homem plural cujo comunismo se projecta e realiza na religião da humanidade. O pensamento individual é, pois, para o político Augusto Comte somente explicável pelas condições e determinações da sociedade, a que o homem obedece consciente ou inconscientemente.

 

Publicou estas linhas em 1975. Dois anos depois, no prefácio que escreveu para o livro de Comte Reorganizar a Sociedade, a adesão é clara e insofismável:

 

Se o progresso natural e cultural do homem se afirma cada vez mais no sentido da socialização, aliás exigida pelas condições cooperativas do trabalho diferenciado mas coordenado, explicável é o movimento socialista, não só porque submete o indivíduo à sociedade, mas porque confere ao ente colectivo e totalitário um predicado religioso.

Certo é que a civilização nos torna cada vez mais dependentes da sociedade, e a gradual intelecção de que vivemos por ela nos impele à volição de que vivamos para ela. A moral de Augusto Comte, substituindo o egoísmo pelo altruísmo, é a expressão sociológica de uma verdade religiosa.

Não agradava a Augusto Comte a palavra Deus. Consequentemente, levou o seu desdém por toda a teologia escrita ou falada, ao ponto de denominar teológico o estado mitológico, contradizendo o primado do monoteísmo bíblico. Filósofo autêntico, nem podia pensar sem relação ao ente supremo, que ora designou por Grand-Être, ora confundiu com a Humanidade. A filosofia de Augusto Comte nunca poderá ser classificada de materialista, mecanista ou ateísta, por quem for sensível à palpitação da vida, amor e espírito que sobem das entrelinhas para as linhas do genial escritor inspirado. (p. 22)

 

O Grande-Ser ou a Humanidade, de cujo advento depende a salvação, é, nas doutrinas emanatistas neoplatónicas e muçulmanas apenas a Décima Inteligência, que se teria dispersado em parte por múltiplas parcelas de luz na matéria indefinida e obscura.

Um dos temas polémicos da filosofia medieval era o de saber se a reintegração das parcelas trazia consigo a anulação de cada uma delas no todo ou se a mónada se intensificava pelo seu regresso à grande luz primordial.

Toda a obra de Álvaro Ribeiro nos diz a conversação evolutiva das mónadas, pensadas como imperecíveis pelo seu mestre Leonardo Coimbra. Mas esta doutrina deve ser associada àquela que vê na evolução da humanidade o caminho para um estado social em que cada homem é sacerdote, sacerdote de rito familiar secreto e intransmissível. A humanidade constituirá então uma imensa sinagoga no estudo infindável da palavra de Deus.

É certo que a décima inteligência é o reflexo ou o lugar onde mora, pelo movimento “de escala ou de cabala”, a primeira Inteligência. O mal é, porém, uma realidade que se anulará não pelo regresso, mas pelo progresso, que operará a perfeita sinagogia das mónadas. Neste ponto, como noutros, Álvaro Ribeiro segue o ensino de Leonardo Coimbra.

Fica sempre de pé que nós, homens, nos movemos no Grande-Ser, identificado pelos filósofos árabes com o Arcanjo São Gabriel ou Espírito Santo. Diferimos dos insectos, – das formigas ou das abelhas – porque a mónada que cada um de nós é anima de sentido original e irrepetível as vinte e duas letras de que todos somos formados. As combinações são múltiplas mas só têm sentido aquelas que reflectem o logos, que adquirem a dignidade da palavra. A frase e o silogismo nascerão do amor que concita o verbo na relação fraternal com os outros, para que a República dos Homens se concilie com o Reino de Deus.

Assim, o aperfeiçoamento da razão natural para a razão social não é o egoísmo. Aperfeiçoemos o nosso indivíduo por tal forma que o movimento da humanidade para o logos necessite inteiramente dele. O descuido é um pecado imperdoável, talvez aquele a que misteriosamente alude Cristo quando fala do pecado contra o Espírito Santo.

Aqui se põe o problema das relações da filosofia com a política. Em clara oposição a José Marinho e a todo o pensamento acentuadamente místico, Álvaro Ribeiro defendeu que a filosofia se deve exercer entre a contemplação e a acção, de modo nenhum entre a contemplação e o ser. O efeito do pensamento sobre a sociedade dos homens é inegável quando associações como uma das três internacionais movimentam, ao serviço de uma doutrina que lhes convém, todo o jornalismo, isto é, os meios cotidianos de ensino (televisão, imprensa, universidades). O confronto tem como resultado a propagação real do que nas três, em dado momento, é comum. O ensino, por exemplo, se descartarmos as diferenças superficiais de catecismo, será, nas suas linhas essenciais, o mesmo, seja qualquer das três a dominar os poderes do Estado. É que esse comum actuante não depende mais dos indivíduos e das colectividades. Ele alterar-se-á, transportando a humanidade para outros destinos. Neste sentido, o pensamento individual dum filósofo parece completamente ineficaz. Veja-se o exemplo de Álvaro Ribeiro. Expôs em vários livros um sistema completo de ensino, que, a ser aplicado, alteraria de todo em todo a educação do povo português e o levaria a níveis superiores de saber, de inteligência e até de ser. Só que nunca será aplicado por deliberação consciente de um ministro. Se, por ventura, isso acontecesse seria demitido no dia seguinte. Tentou-o Leonardo Coimbra, quando foi ministro da educação, para a sua filosofia do ensino e viu-se quanto tempo permaneceu naquele cargo.

É, pois, inútil estudar, pensar, escrever? Esse movimento da contemplação para a acção é um voo no vazio?

No termo da Dedicatória d’A Literatura de José Régio lemos estas palavras misteriosas:

 

Vai o livro percorrer mundo, e actuar como outros em profundas zonas incognoscíveis.

 

Que zonas incognoscíveis são estas?

Se a Humanidade é um ser, um ser em acção, ela, dando a imagem sobre a qual é feita cada uma das suas emanações, possui um subconsciente e um supraconsciente, sob e sobre a mutável consciência política que é a organização da sociedade num dado momento histórico. Leibniz disse algures que os anjos também estudam e investigam, também interrogam o mistério. Os nossos pensamentos não são em vão e às vezes bem terrível é a responsabilidade do escritor, se vai movimentar em zonas incognoscíveis acções de repercussão incalculável. Mas esta possibilidade é, ao mesmo tempo, a garantia da nossa esperança, porque se tudo se passasse, como se vê passar, só no mundo dos sólidos em que se fixam as mónadas nada mais nos restaria do que a submissão e a servidão.

A obra de Álvaro Ribeiro deve ser encarada como uma unidade e o positivismo aristotélico dos últimos anos assume a suprema expressão nesse maravilhoso livro de memórias que fecha com doze chaves um pensamento verdadeiramente secreto. Ele constitui a sua obra prima literária, é o resultado de uma longa prática da arte de escrever. Raramente a relação dos acontecimentos com o pensamento atingiu tão lúcida e bela realização. É único entre nós. A posteridade não se cansará de admirar a serena cadência dos parágrafos, onde cada período, cada frase, cada palavra testemunham como o pensamento, sem o mínimo desvio da enteléquia filosófica, forma e desenvolve a verdadeira vida religiosa, com o mais atento rigor e a mais positiva liberdade.

 

António Telmo

 

(Publicado em Filosofia e Kabbalah seguida de Àlvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, 2015)





[1] N. do O. – Trata-se do prefácio, intitulado “Pretexto” – cfr. Augusto Comte, Reorganizar a Sociedade, Lisboa: Guimarães, 1977, pp. 9-30. 

[2] N. do O. – António Telmo cita Bruno a partir de A Questão Religiosa, Porto: Lello, 1907, p. 67.