DOS LIVROS. 45
Dois filósofos portuenses e a simbólica do Porto
O portuense Sampaio Bruno baptizou um dos seus obscuros luminosos livros com o nome de Porto Culto. Se lhe lermos em voz alta as letras, esse nome soará porto oculto. E a cidade, recentemente celebrada por Dalila Pereira da Costa num livro admirável, aparecerá a cifrar e a significar ou a esconder um Porto invisível, o Porto do espírito, episodicamente assumido como culto, cultivé. A cabala está tanto mais justificada quanto, nas páginas do livro de Bruno, obscuro filósofo e filósofo obscuro, explicitamente se compara a filosofia a uma viagem ou se refere uma peregrina viagem metafísica que tem como barco a metáfora.
«A beleza suprema da metáfora!», escreve maravilhado o pesado pensador. A dolorosa experiência do exílio político fora causa de outro livro: as Notas do Exílio. Esta palavra exílio pode interpretar-se como «fora da ilha, longe da ilha». Então, o Porto donde parte forçado para França para mais tarde a ele voltar, será a ilha. Como, pois, esta interferência, o estar um no outro o mundo da experiência terrena e da experiência sobrenatural? É uma esfera a significar outra? Ou, mais do que significação, é a dupla face do ser numa só vivência?
«Viajar para quê?», pergunta Sampaio Bruno e logo responde: «Para voltar.»
Absurda viagem, que só não é inútil porque a perpassa o mistério da reintegração. Mas, esquecidos, só o vazio de ser e de pensar invade a nossa percepção diminuída. O tédio apodera-se do viajante.
O homem é, entre os animais se é animal, entre os anjos se é, como pensa Bruno, uma parcela de luz perdida, a única inteligência que experimenta o tédio. Aborrecemo-nos. Como havemos de fazer para vencer o aborrecimento? Ou nos automatizamos na rotina do trabalho ou nos damos ao prazer excessivo, ao prazer, por exemplo, de falar incansavelmente o dia todo, ou, se os deuses o concedem e a alma não falta, encontramos na vida interior, na iniciativa do pensamento, o instante repetido em que luz, mais ou menos nítida, a nossa Ideia de Deus. Essa iniciativa é, no espanto de ser que a promove, o princípio da filosofia. Mas a filosofia é, em Bruno, uma arte poética, pois tem como organon a metáfora.
O que é a metáfora?
Só na retórica primária para colegiais a metáfora é uma figura de estilo. É útil que o seja para lhe vermos o rosto. Ela é, porém, a translação do pensamento, não uma mera rotação de atributos à volta de uma mesma substância. À inútil poética que sempre diz o mesmo e que na aparência prestigiosa do movimento das imagens conta sempre aquela história de que todos estamos cansados substitui Bruno a poética da translação do sentido, pela qual este busca o outro transcendente que instaurará uma nova história, mudando a face do mundo.
Quem leva esta poética às últimas consequências é José Marinho.
Espíritos presos ao mundo sensível, ao mundo das imagens, rompemos dificilmente por essa selva da abstracção que é a Teoria do Ser e da Verdade. A primeira impressão é, pois, de que se trata de um livro de pensamento eminentemente abstracto, em que nos falta o suporte da imagem para a ilusão do pensar. Dizemos ilusão do pensar no sentido de que o pensamento não se realiza em nós mas a sua ilusão.
Mais atentos, verificamos que tudo nele é imagem, imagem é certo, «que se cinde constantemente de si», mas que, ao cindir-se, arde e deixa um rasto de luz acendendo-se e apagando-se e é, ainda, no lento e pesado esforço do nosso pensar, o pretexto para voltar a cair no mundo sensível. Escrevemos, sem dúvida, para quem leu e, sobretudo, para quem lê a Teoria do Ser e da Verdade.
A dificuldade não está em ser um pensamento abstracto. Está no articulado e na articulação das ideias, visíveis na transparência instantânea das imagens.
Há, no entanto, nesse livro, imagens que se demoram. A mais evidente é, como Bruno, a da viagem.
A teoria, isto é, a filosofia é comparada a uma viagem. Frequentemente ocorre a comparação. É dada em termos tais que assistimos a esse cindir-se de si própria da imagem, movimento no qual José Marinho vê a condição de haver imaginação ao serviço da filosofia.
A figuração sensível da viagem é a de um movimento realizado por um viajante que se desloca de um lugar para outro. Geometricamente, é a de um ponto que se desloca numa linha ou que vai formando a linha na medida em que se desloca. Então, dir-se-ia que a filosofia, enquanto viagem, procede do conhecido para o desconhecido. Muitos imaginam assim a filosofia: temos um mundo conhecido e bem iluminado, o mundo sensível ou o mundo das noções imediatas e depois uma zona de penumbra onde começa o desconhecido.
Inverta-se, porém, o movimento e parta-se do desconhecido para o conhecido. Eis, nos termos de José Marinho, a «viagem insituada», sem ponto de partida e de chegada, sem lugar ou lampo, «viagem na qual nasce o próprio viajante».
Mas o que é aqui o desconhecido?
É logo de início o próprio mundo sensível e daí o enigma primogénio da sensação. Eis que habita em nós. Não há pontos firmes e toda a dificuldade está em movermo-nos onde não há lugar.
Desta viagem disse Bruno que o barco é a metáfora. Escreveu maravilhado: «A Beleza suprema da metáfora!» Nele, porém, a imaginação ainda não se cindiu de si. A noção de insubstancial substante, central no pensamento de José Marinho, se está presente em Bruno, ainda se não assumiu nele em toda a verdade. Por isso na «Teoria» se diz que é necessário transcender (não eliminar) a imagem do veículo ou do barco. Marinho, ao dizer isto, pensava certamente em Sampaio Bruno.
O insubstancial substante é o espírito. Eis o verdadeiro promotor da metáfora humana, cósmica e divina que ao cindir une e ao unir cinde o Todo e o Nada, da visão unívoca em que tudo é para a extrema cisão em que nada é.
Eu não posso representar-me a viagem de um ponto para outro ponto, de mim para o desconhecido de mim, porque não sou o sujeito do conhecimento. A condição da «viagem insólita» é então a de me assumir como um enigma, separando-me da ilusão do mundo exterior, no início ilusão e realidade no termo, pela descoberta da minha interioridade.
«Tu que estás aí e me lês», parece dizer José Marinho, «já alguma vez te assumiste como homem interior? Saberás então que vives envolvido na própria imaginação de ti, mas é possível que ressurjas na ideia, se se rompe a auto-suficiência da tua vida mental, de que ignoras, com o ignorar próximo de quem toca o ignorado, origem e princípio da tua interioridade. É o momento fundamental em que interrogas não já pela origem e princípio das imagens que em ti e lá fora nascem, mas do teu próprio ser.»
Quem sou eu? Quem é eu?
A este momento, a esse momento, àquele momento chama José Marinho o da descoberta da subjectividade, do encoberto.
É então o sujeito do conhecimento o espírito?
Poderá dizer-se dele que é sujeito?
Aqui há o risco de ver o pensamento do nosso filósofo, ao afastar-se de Sampaio Bruno, dissolver-se numa concepção de tipo oriental em que tudo é pelo uno e fora do uno só é em modo ilusório. Esse risco foi precisamente o que ele conseguiu superar pela noção da cisão no seio da visão unívoca. E irá encher de realidade e de verdade os extremos aparentemente mais remotos onde parece não chegar a presença do Espírito. A sensação, extremo ocidental da alma, surge como um acto real de conhecimento, agora que sabemos interrogar por quem sente.
José Marinho herda do seu Mestre Leonardo Coimbra a valorização cristã da sensação. Ama o mundo exterior e as extensões cheias de luz. Dizia-me ele uma tarde nos jardins da Gulbenkian, olhando maravilhado umas flores amarelas: «Em novo não gostava do amarelo.» O sol interior rasgava, dentro de si, o espaço exterior das formas luminosas. Sim, «na instantaneidade da sensação é dado todo o imenso mundo visível».
Esta inversão destrói a perplexidade de nos sentirmos exíguos perante o enorme mundo. O imenso mundo é, afinal, apenas um relâmpago. Um relâmpago que perdura. Basta abrir os olhos.
Todavia, vemos mas o mistério subsiste, na imobilização milagrosa da luz. Melhor, só há mistério enquanto se vê.
Quem vê? Voltamo-nos para a frente como se fôssemos um espelho do que ali se patenteia, mas é por detrás de nós que está o verdadeiro objecto. Por detrás de nós? Precisamente na nuca, onde os dois olhos de Jano – os ouvidos? – contemplam o infinito da «viagem intérmina».
António Telmo
(Publicado em Filosofia e Kabbalah, 1989)