DOS LIVROS. 44

08-09-2015 09:11

O best

 

Há nas cartas de jogar uma figura, o best, capaz de assumir todos os valores, embora em si não possua valor nenhum. Análogo ao papel do best no jogo de cartas é o do zero matemático nos sistemas numéricos. Se o sistema é binário, o zero vale 1, se o sistema é décimal, o zero vale 9. É uma valência que varia de acordo com a estrutura numérica em que se integra e que permite a circulação infinita das operações.

Best é o melhor, mas este sentido comuta-se com o de beast. Nas cartas de uso português, aparentemente não existe o best. Todavia, em certos jogos, como por exemplo o sete e meio, uma convenção popular atribui ao dois de paus a mesma função. Porquê o dois de paus? Não haverá nesta escolha uma figuração secreta, a de uma besta cornúpeta?

Dada a versatilidade do best, esta sua capacidade de receber o valor que se queira, o jogador a quem ele coube em sorte encontra-se numa situação em princípio favorável, mas a dinâmica dos movimentos — associações e antíteses — que o desenrolar do jogo desencadeia, pode vir a tornar ineficaz a acção do best. Isto não significa que ele não seja por definição e à partida o outorgador do poder.

A sua relação com o dinheiro, sem o qual o jogo das cartas é um passatempo de crianças, está na própria definição de um e de outro. Também o dinheiro, na forma de ficha ou de papel-moeda, do papel-moeda sem valor material em ouro, prata ou cobre, cuja invenção Goethe atribui a Mefistófeles, também o dinheiro é um nada que se transforma em valor, no valor que se quer quando o produto se altera em mercadoria e o comércio se assenhoria do mundo. Marx pretendeu uma humanidade sem best. Como os cátaros na Idade Média, Lutero e Calvino e os demais protestantes, este filho de um rabino tentou forçar o mundo a girar sem o elemento essencial, sem aquele princípio de revolta e de luz, que a filosofia tem designado por princípio de individuação.

É o indivíduo o valor que eu assumo, aquilo que me permite ser singular e jogar-me como um projecto na existência. Mas se o best é o princípio de individuação, é também o ser genérico, o ser que podendo ser tudo é nada, a matéria que assume todas as formas e ela mesma não tem forma nenhuma, pelo que uma humanidade sem best é uma humanidade totalmente identificada com o best. Reduzir o jogo de cartas a uma única carta – o best – é tornar impossível o jogo e com ele o valor.

 

António Telmo   

 

 

(Publicado em Filosofia e Kabbalah, 1989)