DOS LIVROS. 41
Quos Jupiter vult perdere prius dementat
Assiste-se, nestes anos do fim e do princípio, a dois movimentos que se combinam e misturam perigosamente: o de uma vastíssima corrente, invasora de todo o humano, que se pode caracterizar pela intenção, progredindo de uma consciência oculta para uma subconsciência superficial, de cindir do divino o homem, afundando-o e submergindo-o no sórdido e no macabro, e o de outra, excessivamente obcecada pelo esotérico e seus mistérios, que aceita todas as ligações com o divino desde que este não seja tido e entendido como tal. A ciência tecnológica ou tecnomágica marca o passo e o ritmo de uma e de outra, ela que, na sua pureza newtoniana original, não foi mais do que só isto: uma expressão superior do espírito erguendo-se das trevas para a luz.
Uma e outra, aparentemente contrárias, estão fabricando a demência dos homens, demência que pode ser entendida de dois modos rigorosamente etimológicos: como corrupção da mente humana ou como separação dela da realidade. Quos Jupiter vult perdere prius dementat. Não é a poluição do respirável, do audível, ou do comestível agredindo e consumindo lentamente a vida o propósito primeiro do espírito que nega. É a dementação que persistirá para além da morte, nos prolongamentos subtis do género humano. Para tanto dispõe de múltiplos e indefinidos mecanismos: o do ruído que ensurdece, desorienta e desequilibra, ferindo, como os franceses bem sabem através da sua língua, o entendimento; o da imagem que hipnotiza ou adormece as resistências da alma pondo no íntimo de uma memória esquecida de si múltiplos obstáculos à faculdade de pensar; são constituídos por tudo o que o leitor facilmente reconhecerá invadindo-lhe a casa pela televisão, pela rádio, pelas máquinas de uso doméstico, actuando na escola, no café, nos congressos, no desporto. Para o espírito que nega, se a demência for conseguida tudo o mais virá por acréscimo e consequência. É falso que o homem moderno viva em inquietação. Tornou-se indiferente ao que de monstruoso se vai produzindo, ao crime que perverte a natureza, a todas as formas de homogeneização que lhe destroem a individualidade.
António Telmo
(Publicado em A Terra Prometida, 2014)