DOS LIVROS. 39
Coincidências, 2
No Café com Rui P. Dizia-me ele que Bagão Félix vinha nessa noite falar em Estremoz contra o desmancho artificial do projecto de organismo que a enteléquia feminina forma no ventre fecundado das mulheres. No meio da conversa à volta do assunto, o meu interlocutor esqueceu-se do nome de Bagão Félix, perdeu-o e não foi capaz de o achar. Eu quis ajudá-lo, mas verifiquei que também o tinha esquecido. O homem, um velho de oitenta anos, irritou-se. Pelo seu espírito passou a sombra de Alzheimer.
Este esquecer-se de um nome próprio quando o outro que connosco fala se esqueceu antes é frequente e até se dá com mais do que dois interlocutores. Há um outro caso típico de relação psíquica supranormal que também me foi dado experimentar frequentes vezes. Esperamos alguém em lugar e hora combinados. A pessoa não chegou. Passaram largos minutos. Quando já pensávamos que não viria, aparece alguém que, por instantes, julgámos ser ela, tão semelhantes são no aspecto físico e até nos movimentos. Verificado o engano, não tivemos que esperar uns momentos para que o modelo que tínhamos no espírito aparecesse então em carne e alma verdadeiras.
Voltando ao Bagão Félix, o esquecimento que tivemos do seu nome foi seguido de um acontecimento tão extraordinário quanto feliz. Uma das empregadas do Café onde conversávamos veio levantar a mesa ao lado, e eu, movido por um súbito impulso, ordenei-lhe suavemente:
– Diz uma letra.
Ela disse: B. E o nome do político saltou das entranhas obscuras da memória de ambos para a luz da consciência e da vida de relação.
Procurei então conversar sobre estes labirintos do espírito, mas Rui P. disfarçou o íntimo receio do divino pegando num jornal que estava sobre a mesa, fingindo que estava nele interessado. Estou crente em que o leitor saberá ligar o que certamente ficou por ligar no espírito do meu ocasional interlocutor.
António Telmo
(Publicado em A Terra Prometida, 2014)