DOS LIVROS. 36
Martinismo e filosofia portuguesa[1]
Não será, talvez, mau, para abrir estas páginas, ver o que portugueses pensaram sobre Pascoal Martins ou sobre o martinismo. Escolhemos três nomes bem representativos do génio nacional, que são Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro e Sampaio Bruno. Passamos a citar:
“O ternário sagrado! Saint-Martin, seu inventor e promotor! Mas, sem embargo de sua peculiar originalidade, cumpre não esquecer que Saint-Martin começara por ser discípulo de outrem, de um desses homens extraordinários que gravam sua personalidade na sua época; e esse homem era português, “misterioso português”, consoante (realista, romanescamente) se compraz em lhe chamar o biógrafo crítico do “philosophe inconnu”, o sr. Matter. Português-judeu, cristão-novo, “de raça oriental e de origem insólita, mas tornado cristão à laia como assim se tornavam os gnósticos dos primeiros séculos.” Quem?
“Quanto mais se estuda Saint-Martin, com o tratado do seu mestre, Da Reintegração, à vista, tanto mais se sente, em toda a sua profundidade, a influência do teurgista de Portugal sobre o mais célebre dos seus discípulos de Bordéus.”
O autor do tratado Da Reintegração, manuscrito com que, na data, teve a felicidade de deparar o sr. Matter, designa-o este por teor equívoco para ouvidos lusitanos, apesar, todavia, de seus propósitos correctivos. “Toda a vida de Martinez de Pascualis está envolta em mistérios. Chega a uma cidade não se sabe de onde nem para quê. Deixa-a não se sabe quando nem como. Sabemos que dom Martinez findou seus dias em 1779 em São-Domingos, em Port-au-Prince, o que por muitas vezes fez com que o dessem por espanhol.”
Vê-se, por estas linhas de Sampaio Bruno (O Encoberto, pgs. 331-332), a preocupação em acentuar a nacionalidade portuguesa de Pascoal Martins. Não certamente por patrioteirismo, assim como a massa imbecil se orgulha de que o Figo ou o Eusébio ou o Saramago sejam portugueses. Mas sim, como se vê depois, lendo todo o capítulo, para mostrar que martinismo e filosofia portuguesa são a mesma verdade, pela origem e pelo desenvolvimento.
É o que vem afirmado na segunda citação:
“A tradição portuguesa, a esperança de que o Cristianismo reintegrará o Homem e a Natureza no Reino de Deus, durante o século XVIII passa a exprimir-se em termos diferentes dos que ficaram estabelecidos na nomenclatura da teologia católica e da filosofia aristotélica. A obra de Pascoal Martins, vertida maravilhosamente na cultura da Europa Central, dá-nos uma síntese, ainda hoje admirável, das tradições peninsulares.” (Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, pg. 142).
Com efeito, a pureza do ensino da Kabbala, doutrina que se forma pelo cruzamento do esoterismo judaico com o esoterismo cristão, teve a Península Ibérica como principal foco de irradiação, do século XII em diante.
O martinismo foi-nos devolvido mais tarde, predominantemente no início do século XX, pelos franceses, mas a forma degenerada de que se revestiu até então aparece denunciada na terceira citação, que é de Fernando Pessoa, nos seus textos sobre a Maçonaria, falando dos conhecimentos superiores que porventura desçam ou tenham descido até ela:
“Melhor será se estes conhecimentos especiais estiverem apoiados em, ou fundamentalmente derivem de, uma iniciação de tipo supermaçónico. Há, porém que notar que há iniciações extramaçónicas que não habilitam em nada à compreensão da Maçonaria; outras ainda, que são postiças; mais conduzem ao desentendimento que ao entendimento dela. Está no primeiro caso a iniciação em certa Ordem, de tipo rosacruciano, que tem sede em Londres; está no segundo caso o pseudomartinismo fundado por Gérard Encausse (Papus).” (Obras de Fernando Pessoa, Lello & Irmão, pg. 436 do Vol. III)
Mas de França, felizmente, no que a martinismo diz respeito, não recebemos só o pseudomartinismo de Papus. Um dos discípulos de Pascoal Martins, que dele recebeu directamente o ensino, estabeleceu a partir da Ordem Templária da Estricta Observância o Regime Escocês Rectificado, combinando uma tradição que, segundo Jean Tourniac, tem raízes na Ordem Militar de Avis, com a que, através do seu mestre, prolonga, na Europa Central, a Kabbala peninsular. Esse discípulo foi, como se sabe, Willermoz. De Claude Saint-Martin que com ele colaborou na formação do referido Regime maçónico não há qualquer prova segura de uma transmissão iniciática em que se funde esta ou aquela organização, não obstante a profunda e vastíssima influência que exerceu através dos livros.
O que é que se conclui daquelas três citações e da existência entre nós do Regime Escocês Rectificado?
Por mim concluo que dispomos de um caminho simbólico de tudo quanto o martinismo ensina e que, mais uma vez se verifica, não precisamos de sair de Portugal na aventura do conhecimento. N’A Ideia de Deus de Sampaio Bruno temos a mais admirável reformulação filosófica do Tratado de Reintegração dos Seres nos seus Princípios Primitivos. De Sampaio Bruno “partem todos os caminhos”. Claro que não podemos reduzir o pensamento de Álvaro Ribeiro, de Leonardo Coimbra, de José Marinho ou de Agostinho da Silva à Ideia de Deus, tal como a concebeu o filósofo obscuro, porque onde o Espírito sopra não há repetição. Por isso mesmo, não podemos cair no erro de pensar que Pascoaes, Pessoa e Régio dizem coisas diferentes. Estão juntos no essencial, naquele essencial mais directamente apreensível no primeiro, dado que a teoria da saudade para o Regresso ao Paraíso é, logo à partida, o movimento da Reintegração dos Seres nos seus Princípios Primitivos.
António Telmo
(Publicado em A Terra Prometida, 2014)