DOS LIVROS. 24
«Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se para dar lugar ao caldeamento de todas as formas residuais da Pátria. Está situado naquele ponto limite em que o passado e o futuro se cruzam mais uma vez com nitidez absoluta. Não esteve sozinho. Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela.»
Teixeira de Pascoaes, o poeta da Natureza
Toda a reflexão sobre a saudade resulta necessariamente pobre se não passar por Pascoaes e não se detiver aí o tempo do pensamento.
É este, quanto a nós, o único senão da “antologia”, seguida de dois estudos de Pinharanda e Dalila[1], sobre a saudade, onde não avultam, como era devido, os textos mais significativos de Pascoaes. A saudade é um sentimento e não se ignora que ele por si só possa constituir objecto de reflexão, como objecto de reflexão tem sido, por exemplo, o amor, sem que necessariamente tenhamos de nos reportar a Camões, a Platão ou a Leão Hebreu. A verdade, porém, é que à saudade está referida a cosmovisão de um povo[2] e, antes e depois de Pascoaes, tudo quanto se disse ou escreve, diga ou escreva, ficará sempre aquém do seu primeiro apóstolo que nela viu a Virgem-Mãe do Evangelho da Pátria. Dir-se-á que o poeta exorbitou, que levou demasiadamente longe a translação de metáfora e que sempre permanecerá um núcleo irredutível – o sentimento, tal como cada um de nós o vive. Restringe-se assim ao plano da psicologia aquilo que o autor do Maranus alargou às esferas envolventes da cosmologia e da teologia. Saber se a saudade é um sentimento exclusivamente português e o galego não importa muito (importa tanto como discutir a nacionalidade de Espinoza, por exemplo), se não soubermos, como soube Pascoaes, encontrar-lhe as raízes na própria substância do mundo e a ideia no próprio pensamento transcendental.
O leonardino Delfim Santos, interpretando Pascoaes, observa que a saudade opera a inversão do tempo linear e causal, porque na saudade o futuro é o passado e o passado é o que dá sentido e conteúdo ao futuro”. Diríamos, desenvolvendo e aplicando, que a saudade é o sentimento da forma cíclica do tempo. Se a cor, a figura e o movimento das coisas criou a vista nos animais e no homem ou o perfume o olfacto, há na alma humana esse sentimento misterioso, órgão subtil de sensação, que apreende a natureza própria do tempo.
Pascoaes vai mais longe ainda. Se o tempo é um movimento serpentino que enquanto se desenvolve se envolve, dobrando-se e apoiando-se, em cada ciclo, sobre um só arquétipo, há que defini-lo por um centro, onde se cruzam o passado e o futuro, o invisível e o visível. Pela saudade, que é num só acto, desejo e lembrança, presença e ausência, a carne se faz espírito e o espírito se faz carne. Ela exprime, na forma de um sentimento, o contacto da alma com o centro misterioso do mundo, donde partem e onde convergem todas as direcções do ser. No Maranus é a Virgem-Mãe do novo Cristo. E Belém desta vez é no Marão.
Pascoaes vê naquele que foi iniciado nos “mistérios” da Saudade o “ser duplo”, uma espécie de “Jano Tetrafonte”, tornando senhor da rebis – a coisa dupla. No homem comum, a saudade é apenas um sentimento, mas o que inquieta, perturba e entusiasma o poeta é verificar que há um povo, o seu, a quem foi dada a graça sem o saber, do sentimento do centro do mundo. Tão espontaneamente como a vista foi dada aos homens de todo o mundo. Por isso defendeu a iniciação poética pela saudade e nela viu o carro de fogo capaz de nos transportar de novo ao Paraíso.
O homem comum não tem consciência dessa estranha vivência mnésica “não só referida a pessoas, mas também a coisas inanimadas” que lhe dá a alegria da presença com a dor da ausência num só acto psíquico, mas está nela e por ela está ligado, embora remotamente, de maneira reflexa e indirecta, ao centro do mistério do mundo. Só quando Maranus morrer, isto é, quando Portugal se perder em Eleonor, a Pátria Celeste de Sobolos rios que vão, só então a Saudade, a Presença Absoluta, se revelará em nós como a forma do próprio Paraíso.
* * *
Teixeira de Pascoaes é um dos poetas do limiar do tempo, quando o terceiro ciclo da nossa história está prestes a fechar-se para dar lugar ao caldeamento de todas as formas residuais da Pátria. Está situado naquele ponto limite em que o passado e o futuro se cruzam mais uma vez com nitidez absoluta[4]. Não esteve sozinho. Outros, tão videntes como ele (Guerra Junqueiro, Pessoa, Bruno, Leonardo, Régio), viram a mesma estrela.
Hoje quase não é lido. O saudosismo foi apressadamente catalogado como corrente literária, na medida em que fez escola, para ser esquecido no mar dos medíocres onde se perdem e afundam todas as correntes. O papel dos adversários do povo português é este. Não podem fazer outra coisa senão crítica literária ou o análogo. Servidos às vezes por espíritos lúcidos, mas minados de inveja, neles se apoiam, tentando em vão roer o Livro que, por ter sido escrito por todos nós, desde Pessoa a Pascoaes, é indestrutível. É um livro, como disse Régio, que tem as páginas em branco e os caracteres invisíveis. Não se pode catalogar.
António Telmo
(Publicado em História Secreta de Portugal, 1977)
[1] N. do C. - Dalila L. Pereira da Costa / Pinharanda Gomes, Introdução à Saudade (Antologia Teórica e Aproximação Crítica), Porto, Lello & Irmão - Editores, 1976.
[2] Francisco da Cunha Leão, O Enigma Português.
[3] Ver nota pág. 133
[4] Era tão intenso em Pascoaes o sentimento deste limite que numa carta a Unamuno escreve: “Estamos a viver um momento decisivo, anterior a um novo fiat lux.” (Mário Garcia, Teixeira de Pascoaes, Braga, 1976).