DOS LIVROS. 11

06-06-2014 14:41

De um caderno de apontamentos. 05

 

Muitos meses depois de ter escrito Os Dioscuros, um conto imaginado por reacção à clonagem, descobri que a escolha do nome Leda para a mãe dos dois irmãos gémeos se deveu a um acto de escrita automática, mas do domínio do mistério.

O nome viera por imposição do ritmo da frase: “Fui encontrar leda a vossa mãe, leda como o seu nome”.

Sempre que, durante esses meses, me lembrava do conto, esse filho do acaso vinha-me à memória em contraste com os nomes das outras personagens que conscientemente escolhera com a mais rigorosa propriedade. Assim Zebedeu era o pai de Tiago e de Túlio, como é no Evangelho, de Tiago e de João, dados pela tradição como gémeos. O duplo aparecimento do T é propositado e o nome de Túlio é censurado no conto pelo vagabundo que repreende o pai por não lhe ter posto o nome de João. Os dois rapazes nascem de um parto difícil ao ribombar do trovão. Cristo chama aos dois discípulos “filhos do trovão” e, por isso mesmo, o vagabundo, o sábio mendigo itinerante os crisma, a Tiago e a Túlio, de Boanergues. Tudo isto está certo dentro do simbolismo do conto. Só o nome de Leda parecia fugir à regra que traçava linhas direitas entre os vários pontos etimológicos.

Eu sabia que Leda significa alegre, mas não sabia mais nada. Qualquer coisa me dizia, eco de alguma reminiscência, que fosse uma figura da mitologia clássica. Fui hoje ver no Dicionário de Mitologia que a minha mulher comprou ontem. Como é possível?! Leda é a mãe dos Dioscuros que os concebeu de Zeus-Júpiter disfarçado na forma de um cisne. Uma coisa traz outra: Zebedeu prolonga a sonância de Zeus e este é, como Júpiter, o deus do trovão. Não é menos espantoso que coincidam a narrativa cristã e a narrativa pagã.

Tudo isto faz-me responsável do modo como apresentei os factos no conto. Devo reescrevê-lo, porque, sem querer, estou lidando com o sagrado e o misterioso.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)