DOS LIVROS. 04
António Quadros, a Lua e a Primavera
Estamos aqui reunidos celebrando o pensamento de António Quadros para o tornar presente na nossa lembrança e na nossa saudade. Nesta época da televisão em que todas as noites nos expomos sem vergonha ou defesa, ao bombardeamento da imagem, é bom, de vez em quando, não morrer de todo relendo um conto tradicional, não para regressar à infância, mas para nele vermos como a imagem pode ser um símbolo para os homens, quando a luz não é manipulada pelos computadores, mas se revela nas formas da verdade.
“Era uma vez uma princesa que, ao descer, logo vieram sete fadas. Cada uma delas dotou-a com uma virtude, mas a sétima marcou o seu destino de infortúnio.”
Eis que entramos no reino dos mitos e dos símbolos.
Só as almas superiores concentram sobre si, ao nascerem para a vida, os sete poderes fatais, significados pelos planetas.
António Quadros era um espírito superior. No horóscopo que dele fez Vasco da Gama Rodrigues, o signo de Câncer na casa Segunda está povoado de estrelas juntas olhando o recém-nascido. A Lua no seu domicílio domina o céu.
António Quadros não gostou do horóscopo, viu com incómodo que ele o caracterizava como um espírito lunar. E não se libertou desse desgosto mesmo quando outros astrólogos lhe lembraram que a Lua é o espelho do Sol e lhe mostraram que a conjunção de tantos astros no mesmo lugar do horóscopo era o sinal de um destino superior.
Morreu exactamente na hora em que teve início a Primavera de 1993, ali onde a roda do tempo recebe o impulso de luz que o liberta do nocturno Inverno. Refere René Guénon que os iniciados escolhem esse dia para morrer porque assim propiciam que a viagem no outro mundo se inaugure em condições altamente favoráveis. António Quadros não era um iniciado, mas Deus, queremos todos pensar, terá escolhido por ele. Assim seja!
Mais misterioso é o facto de Agostinho da Silva ter pedido para o levarem do hospital para casa onde queria passar o Domingo de Páscoa, dia em que de facto partiu.
A obra de António Quadros é uma obra de reflexão. Não é um filósofo operativo, um filósofo que não confunde a categoria de paixão com a categoria de acção. Reflectiu, com muitas vezes perfeita limpidez, as doutrinas solares dos seus mestres, cuja luz encheu daquela suavidade que a torna suportável e até aceitável pelas almas inferiores que a noite dominada pela televisão envolve. Por vezes há manchas nessa reflexão, como a do excessivo valor que atribuiu à doutrina do inconsciente de Carl Jung.
Esta doutrina aparece a explicar e a defender o mito do Encoberto contra a grosseria de António Sérgio. É sobre o livro de António Quadros Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista que diremos qualquer coisa nos poucos minutos que a cada um de nós são concedidos. Espero que essa coisa qualquer seja a coisa que se quer.
Neste livro, como em Portugal, Razão e Mistério, o mito aparece a interpretar a história, mas é sempre a história que decide do sentido do mito através da política. O mito do Encoberto é a forma que em Portugal assumiu o messianismo, mas, se no judaísmo a espera do Messias degenerou no marxismo e na utopia da sociedade sem classes, aqui, em Portugal, país onde manda Cristo, é a unidade católica, que harmoniza mas não destrói as diferenças dos indivíduos, das classes e dos povos, aquilo que aparece prometido no regresso do Rei e que, sem dúvida, estará confiado à Idade do Espírito Santo. Em consequência, António Quadros não se limitou a criticar e a refutar o optimismo progressista de Marx e seus sequazes, mas repudiou também o pessimismo dos esoteristas, apesar da simpatia que eles lhe mereciam, cuja doutrina resume deste modo: “O albedo do Quinto Império virá assim depois das fases alquímicas de putrefactio e nigredo; a luz do Espírito Santo, após a putrefacção e a morte ritual de todo um povo. A terra portuguesa, queimada, gasta, desperdiçada, a wasteland, povoada de hollow men, de homens vazios, é um Calvário, onde um povo-Messias, um povo-D. Sebastião, um povo-Cristo, é crucificado para ressuscitar em glória e salvar a humanidade. Este é, para Abellio, o mais subtil sentido do sebastianismo e do Quinto Império.“
Se eu tivesse vindo aqui com a intenção somente de expor a mitosofia de António Quadros (era assim que ele gostava de exprimir-se), já há muito que estaria empregado numa universidade. Toda a interpretação que não vai para além de si própria é uma redução, porque é nisso que consiste a objectividade científica, conservando-se dentro dos seus limites. Prefiro ler Leonardo Coimbra e ouvir as suas palavras à saída da fonte, mesmo que o não compreenda, do que lê-lo simplificado numa apreensão mais ou menos correcta. Se o autor disse o que disse naquelas palavras, outras palavras desdizem necessariamente o que ele disse. Antes a fantasia subjectiva dos que atiram ao lado de Leonardo Coimbra e, ao irem procurar o que disseram, descobrem um mundo maravilhoso. Por muito respeito que nos mereçam os estudos de um filósofo que só são científicos quando deixamos a alma em casa, é bom, de vez em quando, que sigamos o movimento da nossa imaginação.
Todos sabemos que o espiritismo é uma aberração, mas comportarmo-nos perante os mortos, com quem convivemos e que amámos em vida, como se tivessem passado a inexistentes e fossem hoje um nada, além de estúpido é imoral. Por isso Álvaro Ribeiro, quando José Marinho partiu, falava dele, nos meses sucessivos em que permaneceu entre nós, como se não tivesse morrido e em tais termos e com tal verdade que alguns julgaram que pelo seu cérebro perpassasse a asa da alucinação.
Façamos o mesmo com António Quadros!
Eu discuti com ele enquanto preparava esta evocação do seu pensamento. O que lhe disse foi mais ou menos o seguinte.
“O meu amigo, levado pelo seu inteligente e corajoso patriotismo, compromete excessivamente o mito do Encoberto com a história política de Portugal. O sebastianismo, como movimento social, é apenas um aspecto menor desse mito. Com o Bandarra o sebastianismo foi anterior a si próprio porque as Trovas foram publicadas antes de Alcácer-Quibir. Você dirá que as profecias do sapateiro de Trancoso nasceram de condições históricas socialmente análogas às que permitiram mais tarde, depois do descalabro da batalha, criar pelo inconsciente colectivo a ideia de um rei eternamente vivo. Se observarmos, porém, que ao mito do Encoberto corresponde uma sabedoria do Encoberto, de que a filosofia portuguesa foi até si a explicitação actual, terá de situar essa sabedoria muito antes do Bandarra com o nascimento da Ordem do Templo como Portugal. No reinado de D. Dinis, as condições sociais eram completamente diferentes. Havia um país pleno de força e de confiança em si próprio e, no entanto, todas as Cantigas de Amigo têm por tema a demanda do Encoberto.
Ai flores, ai flores do verde pino
Se sabedes novas do meu amigo
Ai Deus y u é ?
O Encoberto aparece aqui significado por três vogais: i u e. Y u é, que quer dizer, como sabe, e onde está ? O verde pino deve ser interpretado, em sintonia com a ilha verde em que habita o Rei, como a comunidade gnóstica e as flores como os seres iluminados supremos. A pinha, símbolo sempre presente na arquitectura manuelina, sendo o fruto dessas flores concentra em si ocultas as sementes na forma vegetal duma chama.
Quando o Padre António Vieira desocultou o Encoberto apresentando-o como D. João IV, quando interpretou o Fuão das Trovas do Bandarra, como João Duque de Bragança, o sebastianismo, no sentido que lhe dou de uma sabedoria esotérica, acabou e a Pátria entrou em decadência até esta miséria do nosso tempo em que o deus que cultuamos é o deus Mamon. A revelação do oculto não pode ser histórica. O oculto só se revela à alma.“
António Quadros ouviu-me com aquele jeito tão seu de quem não se sabe se está a ouvir mas que é o modo próprio de quem segue a sua estrela interior e disse-me brandamente : “Está bem. Mas tudo isso não invalida o que eu exponho no meu livro. Os Antónios Sérgios continuam aí“.
António Telmo
(Publicado em Viagem a Granada, 2005)