DOCUMENTA. 06
É um dado novo, ou pelo menos nunca até hoje atendido, na biografia de António Telmo. A saída a lume, em Fevereiro de 1953, em A Bem da Língua Portuguesa - Boletim Mensal da Sociedade de Língua Portuguesa, do artigo "Ensino do Português e ensino do Francês", assinado pelo futuro autor de Arte Poética, motivou, logo no mês seguinte, a publicação de uma carta de um leitor, Mário Martins, na secção "Tribuna Livre" daquele boletim. Eminententemente crítica de parte das afirmações do jovem Telmo, a missiva ficou sem resposta.
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Ensino do Português e ensino do Francês[1]
por Mário Martins
Ex.mo Sr. Director:
Publicou o Boletim do mês transacto, que V. Ex.ª dirige com a competência e brilho já sobejamente demonstrados, um artigo subscrito pelo Sr. António Telmo, cuja essência é um preclaro ataque à obrigatoriedade atribuída ao ensino da língua francesa nos nossos cursos secundários, concluindo o autor, depois de alguns considerandos acerca da influência dela na formação intelectual dos nossos escritores modernos, sem que para tal se reporte, como seria óbvio, num tema desta natureza, às múltiplas evoluções por que tem passado o mundo civilizado, sem lhe ter visivelmente ocorrido que outra língua já tenha exercido, e outras venham possivelmente exercer, a aludida influência, que a prioridade concedida ao francês, em detrimento de outros idiomas, não obedece a um critério definido e concreto, por razões que explana num limitado horizonte, através dum prisma pessoal, consubstanciadas em argumentos insubsistentes.
Observa o articulista, em defesa da sua tese, não se perceber que motivos levaram o pedagogista a preferir esta língua às restantes.
Não é razão de facilidade didáctica, porque mais próximo do português está o espanhol, falado por milhões de indivíduos. Não é razão de utilidade nas relações comerciais e industriais, porque nesse caso seria escolhido o inglês. Não é razão de importância científica, porque então optar-se-ia pelo alemão. E confessa que não é capaz de compreender porque é que aos estudantes dos liceus e escolas técnicas se impõe como condição indispensável de estudo a aprendizagem da língua francesa.
O tema despertou a minha atenção, porquanto o estudo de línguas estrangeiras tem sido a minha paixão dominante, e muito principalmente por discordar quase em absoluto das afirmações produzidas pelo nosso consócio, no artigo em questão.
E assim, pondo de parte a forma como funciona, na Faculdade de Letras, o curso de filologia românica, contra o qual o autor se insurge, faceta do artigo que não discuto, por visar unicamente a organização do ensino do Português e do Francês entre si, que em nenhum aspecto pode justificar aquele ataque nítido à obrigatoriedade citada, inconcebível para o autor, do ensino da língua francesa nos nossos cursos secundários, de preferência à espanhola, inglesa ou alemã, propus-me demonstrar que a estrutura do artigo, por não se apoiar em bases sólidas, se converte num verdadeiro rosário de conceitos pessoais facilmente refutáveis.
Pois haverá porventura algum pedagogista, da velha ou da nova geração, que se permita pôr em equação a universalidade das línguas francesa e espanhola?
Acaso alguém ignora que antes da deflagração da 2.ª Grande Guerra o francês era a língua internacionalmente adoptada em congressos de relevo, acompanhando de perto a inglesa no campo comercial e industrial, a alemã no domínio científico, e suplantando qualquer delas do ponto de vista intelectual?
Acerca da universalidade das línguas espanhola e francesa, pronunciou-se há pouco nos seguintes termos uma revista filatélica do país vizinho, de larga expansão na Europa e nos países Sul-Americanos:
Con alguna frecuencia se reciben cartas en nuestra redacción, mejor o peor intencionadas, en las que se «extrañan» de que editemos nuestra revista en castellano, dando solamente algunas notas interesantes en francés o inglés.
E depois de uma série de explicações absolutamente lógicas, em abono da universalidade da língua espanhola, cuja transcrição julgo desnecessária, conclui por dizer:
Conscientes de esta importancia, de esta universalidad, no dudamos en considerar al castellano como nuestra lengua oficial, si bien, en nuestro cariño a todas las lenguas del mundo, utilicemos con la frecuencia que nos es posible todas las demás, AUNQUE DEMOS ALGUNA PREFERENCIA AL FRANCÉS, POR CREER JUSTAMENTE ES MÁS CONOCIDO DE NUESTROS ASOCIADOS.
Em publicações deste género, os editores americanos, alemães e ingleses procedem de igual modo...
E porquê?
Por que motivo os editores de todo o mundo introduzem sempre o francês, quer se trate duma banalíssima publicação filatélica, quer seja uma obra de vulto literária ou científica?
O motivo determinante do comércio livreiro, a que alude o Sr. António Telmo, é exactamente a universalidade desta língua, originada nas conhecidas causas da expansão, do domínio, da difusão linguística, etc.
Sem dúvida, o espanhol seria mais acessível do que o francês, por facilidade de assimilação, dado que é positivamente, de entre as línguas neo-latinas, a que o aluno aprenderia com maior rapidez, mais abreviadamente, com muito menos dispêndio de esforço intelectual; isto é uma verdade irrefutável, como inegável é também que no tocante a utilidade – «sob qualquer aspecto» – não há paralelo possível entre elas...
Nada justificaria portanto que por «facilidade didáctica» se fizesse a substituição do ensino da segunda pela primeira...
À minha mente, nem sempre traiçoeira, ocorre-me neste instante a categórica afirmação que em 1951 me fez uma consagrada figura da ciência médica, conversando acerca da necessidade do conhecimento de línguas estrangeiras. Dizia-me ele: «Hoje, um médico que queira acompanhar a evolução da ciência tem de saber inglês. A última guerra, como todas aliás, revolucionou grandemente a técnica cirúrgica e a medicina em geral... Reconheço e admiro o valor dos alemães no campo científico, em que ocupavam posição de relevo, mas não ignoro outrossim que as derrotas nas guerras trazem, como consequência natural, um ascendente do vencedor sobre o vencido, motivo por que a Alemanha estagnou, enquanto a América progrediu.»
É certo que não só a medicina é ciência... mas se nos dermos ao cuidado de ouvir os cientistas de outros ramos, creio que não discordarão muito do parecer deste ilustre catedrático.
Seria portanto absolutamente ilógico que no momento presente se substituísse o ensino da língua inglesa pela alemã por razão de importância científica...
Resta-nos a vantagem comercial. Esta, sim, é verdadeira; o inglês é, sem dúvida, a língua comercial por excelência, e o incremento que tomou nos últimos anos é de tal forma considerável que a tornou quase imprescindível ao regular funcionamento das relações comerciais. Disfruta hoje de uma posição claramente vantajosa, sem que todavia os ainda numerosos importadores e exportadores portugueses vissem as suas transacções prejudicadas pelo facto de continuarem a redigir em francês a correspondência trocada com a Inglaterra, a América do Norte e outros países onde o inglês predomina.
Em suma: não é difícil apercebermo-nos, através de manifestações artísticas e literárias, que o francês domina o mundo civilizado no campo intelectual, como também facilmente observamos que o inglês o leva hoje de vencida do ponto de vista comercial e científico.
Quem poderá por consequência duvidar de que são estas as línguas estrangeiras fundamentais, as que inicialmente mais interessa aprender, as de mais vasta utilidade e as de mais rasgadas vantagens, por serem irrefutavelmente as de maior projecção no domínio literário, científico e comercial?
Se alguma preferência houvesse a atribuir-se à aprendizagem de línguas estrangeiras, seria talvez, e unicamente, proceder-se de modo inverso ao actualmente vigente isto é, iniciar o ensino delas começando pelo inglês e seguidamente o francês; mas preferir o francês a favor do espanhol ou o inglês em proveito do alemão – estou eu certo de que bem poucos pedagogistas perfilharão tal ideia...