DISPERSOS. 20
À semelhança de “A esfera armilar”, que os leitores de António Telmo bem conhecem das páginas de Filosofia e Kabbalah, “O segredo de Os Lusíadas” surgiu no primeiro número de Escola Formal, revista de que, sob a direcção de Afonso Botelho e Orlando Vitorino, se publicaram seis números, de Junho de 1977 a Junho de 1978, e na qual Telmo publicou ainda diversos outros escritos marcantes, como “Gramática Secreta da Língua Portuguesa”, “O best”, “Mãos e palavras” (depois reintitulado com o seu primitivo subtítulo, “Como a perversão na linguagem leva à demência na sociedade”) ou, então sob o título “Da teologia para a filosofia”, o notável conjunto de aforismos definitivamente conhecido por “Louvor da matéria”.
Com excepção do artigo camonino, todos os textos referidos foram reunidos no já acima mencionado livro de 1989. Note-se, a propósito, que “O segredo de Os Lusíadas” não deve ser confundido com o texto que serviu de base à conferência homónima que Telmo proferiu em 20 de Junho de 1980, no Palácio Foz, em Lisboa, a convite de Afonso Botelho, no âmbito das comemorações do quarto centenário de Luís de Camões, e que figura em Filosofia e Kabbalah. Tal como “A esfera armilar” surge nas páginas de Escola Formal sem estar assinado (um e outro tendo estado omissos, até agora, na bibliografia activa do filósofo), mas a sua atribuição a António Telmo será, por certo, inquestionável. Trata-se apenas de um breve apontamento, porém sinalizando o superior interesse do seu autor por uma temática – o esoterismo de Camões – que praticamente o obsidiará até ao final da vida.
O segredo de Os Lusíadas[1]
Aqui, minha Calíope, te invoco
Neste trabalho extremo por que em pago
Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
O gosto de escrever, que vou perdendo.
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo de livre faz escravo…
Pondo na cobiça um freio duro,
E na ambição também…
e no torpe e escuro
Vicio da tirania infame e urgente…
E dai na paz as leis iguais, constantes,
Que aos grandes não dêem o dos pequenos,
e numerados
Sereis entre os heróis esclarecidos,
E nesta Ilha de Vénus recebidos!
De longe a Ilha viram, fresca e bela.
Dá Veloso, espantado, um grande grito:
«Mais descobrimos do que humano esprito
Desejou nunca; e bem se manifesta
Que são grandes as cousas e excelentes,
Que o mundo encobre aos homens imprudentes.»
Depois que a corporal necessidade
Se satisfez do mantimento nobre,
Tethys, de graça ornada e gravidade,
Pera o felice Gama assim dizia:
«Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, com os olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, e com prudência».
Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava
De modo que o seu centro está evidente
Como a sua superfície, claramente.
Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas».
O carácter epopeico e patriótico de Os Lusíadas tem iludido historiadores e professores da nossa literatura, que lhe dão a interpretação mais imediata: Os Lusíadas não seriam mais do que a poetização da história pátria e, simbolizado na viagem do Gama, o destino ou a missão dos portugueses estaria todo, como se diz (ou dizia) nas escolas, na descoberta do caminho marítimo para a Índia. Já ironicamente um poeta observou que, descoberta a Índia, os portugueses ficaram sem emprego embora, na conservação do império, ainda tivessem do que, como povo, irem vivendo, ainda tivessem razão para serem povo. Agora, porém, o Império desfez-se, e terá então deixado deter sentido a existência deste povo.
Acontece, todavia, que o vaticínio de Os Lusíadas vai bem mais longe do que «os feitos valerosos» de alguns heróis para «da lei da morte se irem libertando». Não se limitam eles a poetar a história já vivida de um povo, mas vaticinam aquele fim onde reside sua «verdade, condição e destino». A simbólica viagem do Gama não se esgota, não termina, na descoberta da Índia. Alcançada ela, logo o herói a deixa para, já não guiado por deliberação ou prudência humana, chegar onde se diz que «mais descobrimos do que humano espírito desejou nunca? Os versos, extraídos dos cantos IX e X, aí estão para «os que sabem ler».
António Telmo