DISPERSOS. 19

26-02-2023 11:56

A bibliografia activa de António Telmo pode ainda reservar-nos surpresas, visto que alguns escritos publicados em vida do filósofo terão escapado às malhas dos bibliógrafos. É o caso de “A visita”, um breve conto seu que até agora passara desapercebido. Foi publicado em Nas Margens da Solidão, antologia de prosa e poesia publicada em 2008 pela Padrões Culturais Editora, na sequência de um projecto desenvolvido por Maria Azenha e Risoleta C. Pinto Pedro, ambas membros do Projecto António Telmo. Vida e Obra.

Tratou-se de um volume destinado a homenagear e a apoiar o projecto SOS Voz Amiga por ocasião do 30.º aniversário deste serviço telefónico especializado de ajuda psicológica pontual em situações de dificuldade ou crise, realizado por voluntários, não profissionais e não remunerados, e surgido como um grupo de trabalho da Liga Portuguesa de Higiene Mental, vocacionado para a prevenção do suicídio.

Prefaciado por Marco Paulino e com introdução do Professor Doutor Daniel Sampaio, o volume conta, para além da de António Telmo, com a colaboração de Frederico Mira George, João Aguiar, Raquel Gonçalves-Maia, José Jorge Letria, João Rui de Sousa, Jaime Salazar Sampaio, António Ramos Rosa e Adalberto Alves, entre outros autores.

“A visita” parece corresponder a uma versão reduzida de “A fita encarnada”, texto que Telmo viria a destinar a A Aventura Maçónica – Viagens à Volta de um Tapete, obra postumamente publicada pela Zéfiro em 2011, e hoje integrado em A Aventura Maçónica e outros escritos sobre a Arte Real, Volume IX das suas Obras Completas (Zéfiro, 2018). Apresentando também muitas semelhanças com um dos escritos da Autobiografia e Sobrenatural publicada em Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas (Volume III das Obras Completas de António Telmo, Zéfiro, 2015), “A visita” distingue-se, porém, de qualquer destes dois escritos por alguns aspectos de natureza diegética e teorética que muito a valorizam.

 

A visita[1]

 

De uma vez, um amigo meu, seu tanto ou quanto nefelibata, estávamos ambos a conversar enquanto esperávamos por um outro amigo na estação de caminho de ferro de Estremoz, eis que ele, percorrendo com o olhar o céu imenso cheio de estrelas, exclamou: “Ena, tanta matéria!”

Era católico, dos praticantes. A incalculável quantidade de matéria incomodava-o na sua crença: se Deus é espírito, como é que um corpo tão grande poderá ter sido criado e pode ser movido por “o que não tem corpo”?

Chegado o comboio, viemos depois os três para o café Águias de Ouro. Estava uma noite gélida de inverno.

O café estava cheio de gente, de bafo, de fumo e da amálgama das vozes. Eu sentara-me voltado para o lado de onde vinha quem entrava. De súbito, havia uma meia hora de conversa entre nós, apareceu à minha frente como surgido do chão, um homem que pensei ser um pobre de pedir. Olhava para mim como se, finalmente, me tivesse encontrado, ou antes, como se já calculasse que me encontraria ali e isso o enchesse de alegria. Foi o que me levou a confundi-lo com um mendigo que fingisse conhecer-me para que eu lhe viesse a dar dinheiro. Chamei-o com um gesto.

Amparava-se em canadianas, pois a perna direita tinha-a amputada acima do joelho. Via-se pela mochila que vinha de longe. Era um homem forte, uma bela cabeça cheia de nobreza com dois olhos de vivíssimo azul. À volta dela trazia atado um lenço vermelho, disposto como o dos piratas. Tudo nele indicava o nórdico.

 

Por instantes ficou de pé ao meu lado. Dei-lhe uma moeda que hesitou em aceitar, mas que meteu no bolso como quem guarda uma recordação: “Não é isso que quero”, murmurou, ou coisa parecida, mas que depois interpretei como: “Não venho por isso”.

Ofereci-lhe um cigarro por não me parecer humilhante, mas vi que ele tinha na mão um maço de cigarros da mesma marca dos meus. Todavia, nunca fumou enquanto esteve connosco.

– O que eu quero, disse, é um copo de vinho tinto.

Com uma das canadianas, puxou da mesa ao lado uma cadeira e sentou-se.

Provou o vinho, cujo gosto repeliu com um movimento dos lábios e o copo para ali ficou cheio.

Então aquele meu amigo que se espantara com a quantidade de matéria começou a metralhá-lo com perguntas. Queria saber quem ele era, donde vinha e para onde ia. As respostas eram intrigantes. As perguntas foram feitas todas em português.

– És francês?

Estranhamente, o meu amigo tratava-o por tu e estava evidentemente muito nervoso.

– Sou. E trauteava uma canção popular francesa.

– Donde? Do sul ou do norte?

– Dos dois.

Quando lhe foi perguntado se era italiano, inglês, espanhol, respondia sempre na língua dos países que correspondiam a estas nacionalidades. Dizia sempre que sim. Falava como nós o português. Não havia dúvida que era um vagabundo, mas que espécie de vagabundo? Não seria, com o vagabundo, ainda outra coisa? Enquanto respondia, traçava figuras geométricas sobre o próprio rosto.

Eu estava profundamente impressionado.

Findo o interrogatório que a nada levou, voltou-se para mim e falou durante alguns momentos numa língua que poderia ser o árabe, atendendo à aspiração de múltiplos fonemas.

Perguntei-me então para mim próprio: onde é que este homem vai passar a noite? Apesar de tudo, apesar de todo aquele mistério (isto não é inventado, passou-se exactamente assim), o frio lá fora trouxe-me a ideia de que ele era afinal de contas um mendigo, um vagabundo, um sem-abrigo e era talvez necessário ajudá-lo a arranjar onde dormisse protegidamente.

“Onde é a sua casa?” Preferi, não sei porquê, dizer assim.

“A minha casa?” E, apontando sucessivamente os quatro pontos cardeais, sem erro, ao mesmo tempo que os nomeava um a um, respondeu:

– Eis a minha casa. A casa dele era o mundo, mais do que isso, ficava no centro do mundo, a sua casa era ele mesmo onde quer que estivesse. O tecto dele era o céu cheio de estrelas, não era uma quantidade, pois também o tinha em si, espelhado na sua alma, qualificado por letras, mitos, constelações.

Terá o meu amigo compreendido que isto fosse assim?

 

António Telmo



[1] Nota do editor - Publicado originalmente em Nas Margens da Solidão, Lisboa: Padrões Culturais, 2008, pp. 45-49.