DISPERSOS. 17
No dia em que se completa um quarto de século sobre a partida de Agostinho da Silva, publicamos, em homenagem ao Estranhíssimo Colosso, um dos testemunhos que sobre ele nos deixou António Telmo, e que aliás irá integrar o capítulo "Agostinho da Silva, o último discípulo de Leonardo Coimbra" do próximo volume, que será o XI, das suas Obras Completas, A Verdade do Amor precedida de Adriana, que será lançado ainda no decorrer do presente semestre. Chamamos a atenção do leitor para as notas ao texto, onde damos conta da posição do Professor João Ferreira, que nele é mencionado e do teor do mesmo diverge, impugnando vários aspectos factuais do respectivo testemunho.
Três histórias verídicas[1]
Primeira História:
J. F., ex-núncio apostólico da Guiné[2], com no bolso uma carta antiga do Cardeal Cerejeira convidando-o para Reitor da projectada Universidade Católica de Lisboa, doutorado em Filosofia pela Universidade de Lovaina[3], autor de livros notáveis de filosofia franciscana, estava, há alguns meses, desempregado da Igreja no dia em pediu ao Agostinho da Silva, de passagem por Portugal, que lhe arranjasse trabalho no Brasil.
Havia, no meio das árvores do cerrado de Brasília, um edifício inacabado que fora projectado para nele se instalar a Universidade de Teologia. Ficara pelo primeiro piso. Tinha a forma de um grande barco e a planície à volta era um mar. Por cima era como se fosse o convés, onde, a toda a volta, estavam esboçadas umas paredes que formavam como que pequenos camarotes, mas que Agostinho da Silva interpretava como as celas de um convento ou lugares de oração.
Eu e ele todas as manhãs subíamos por uma escada em espiral ao convés do navio e, como num rito, cada vez que aí íamos, o almirante do pensamento dizia ao seu imediato estas palavras memoráveis:
«Ali, naquela cela, ficará um budista, ali um cristão, naquela ali um muçulmano, na seguinte um judeu e, para cada uma das outras, imagine a religião que quiser. Será a primeira Universidade de Teologia porque aqui convergirão para o Uno todas as religiões. Foi o que os portugueses sonharam com a escola de Sagres.»
O pedido de J.F. veio na mesma corrente. O ex-núncio apostólico da Guiné partiu para o Brasil, viagem paga, a fim de fundar a Universidade[4].
Todavia, ali chegado, Agostinho da Silva nunca mais lhe disse nada, depois de lhe ter assegurado moradia e mantimento. Passaram-se longos dias, um trazia outro e o outro coisa nenhuma até que o futuro fundador não aguentou mais e, dirigindo-se-lhe, perguntou:
– Senhor Professor, quando é que pensa que se deve dar início à criação da Faculdade de Teologia? Não foi para isso que vim para o Brasil?
– Exactamente. – Respondeu Agostinho da Silva –. Foi para fundar a Universidade de Teologia que veio para o Brasil. Qual é a dificuldade? Olhe, meu amigo, vá até ao meio do cerrado, sente-se numa pedra e pense em Deus. Fica fundada a Universidade de Teologia.
J.F. saiu desolado desta conversa[5], mas não demorou muito tempo que, pelos caminhos do mundo, o empregássemos como professor de Literatura[6].
Segunda História:
Na Universidade de Brasília, era frequente os alunos chegarem atrasados às aulas. Ninguém os castigava por isso. Sofriam menos tempo as aulas do que os alunos do resto do mundo.
A aula que, nessa manhã, Agostinho ia dar tinha por tema a navegação à bolina física e metafísica. Não estava lá nenhum aluno, já depois do toque. Quando chegaram os primeiros, dez minutos depois, viram espantados que o professor estava a falar para as carteiras e que nem sequer se interrompeu quando eles entraram, prosseguindo por aí fora na sua navegação. Pela primeira vez, aqueles rapazes sentiram que não estavam ali obrigados.
Terceira História:
Um dia ficou doente de morrer. Os médicos disseram-lhe:
– O senhor tem uma doença que leva fatalmente à morte. Há, todavia, uma injecção que o pode salvar, mas essa injecção ou salva ou mata. Neste caso, o doente é quem decide: arriscar-se à injecção ou durar mais alguns meses.
– Venha a injecção. – Disse Agostinho da Silva.
O enfermeiro enganou-se e, em vez de uma dose, deu duas. O doente entrou em coma. Mas, lá por dentro de si começou a ver uma roda a girar. Rodava a grande velocidade, movimentando-se por círculos concêntricos, cada um com a sua cor. Teve, então, a certeza de que se conseguisse fazer parar a roda não morreria e ficaria salvo. Pôs nessa ideia toda a intenção. A roda parou.
Esta história foi-me contada pelo próprio.
Estas três histórias mostram que o pensamento pode criar, comunicar e dar a vida. O pensamento é como um nada ao pé da solidez das coisas e da agressividade da quantidade. Vemos as ruas cheias de pessoas, movendo-se em todos os sentidos, cada uma levada pela sua emoção. Num campo de futebol ou durante uma manifestação política é a humanidade que pesa. Não reparamos na brisa que agita os ramos das árvores e desfralda as bandeiras. Mas toda essa gente vive daquele elemento de onde a brisa nasce e que é invisível e imponderável como se fosse um nada. Agostinho da Silva conhecia como ninguém a suprema importância da brisa. Não foram só os seus livros e os seus discursos que receberam a inspiração do Espírito. Vivia extravagantemente a vida. Tudo o que para nós é exterior era para ele interior. Durante os três anos que convivi diariamente com Agostinho da Silva não precisei de ler os seus livros e de ouvir as suas conferências para saber para onde nos levava.
António Telmo
[1] Nota do editor – Publicado originalmente em A Phala, n.º 38, Julho/Agosto de 1994, p. 20.
[2] Nota do editor – António Telmo refere-se a João Ferreira (n. 1927, Agunchos, Ribeira de Pena), hoje Professor aposentado da Universidade de Brasília, na qual ingressou em 1968, após convite de Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa. A respeito deste e de outros escritos em que António Telmo o menciona (nomeadamente o texto seguinte do presente volume e a entrevista à revista Ler – Livros e Leitores, de 1998, conduzida por Francisco José Viegas, já publicada no Volume VI destas Obras Completas (Viagem a Granada seguida de Poesia, pp. 95-107) o depoimento que nos foi prestado por João Ferreira contraria, em vários aspectos, a versão apresentada por António Telmo. Assim, desde logo, João Ferreira nunca foi núncio apostólico. Na Guiné-Bissau, foi Director-Geral, residente em Bissau, de todas as escolas, rudimentares, primárias, técnicas e de formação de professores de primeiro grau da Prefeitura Apostólica daquela província ultramarina, num total de cerca de 500, entre 10 de Junho de 1963 e 10 de agosto de 1965.
[3] Nota do editor – Na verdade, foi na Pontifícia Universidade Antoniana de Roma que João Ferreira, em 10 de Dezembro de 1953, defendeu a sua tese de doutoramento intitulada Petrus Hispanus eiusque positio psychologica relate ad Avicennam [Pedro Hispano e a sua posição doutrinal em psicologia relativamente a Avicena].
[4] Nota do editor – João Ferreira afirma que nunca Agostinho lhe falou de teologia nem de cargos teológicos nem de uma Faculdade de Teologia.
[5] Nota do editor – Cf. a nota anterior: a versão de João Ferreira contraria este relato.
[6] Nota do editor – Segundo João Ferreira, Agostinho da Silva foi sempre a pessoa mais participativa, mais atenta, mais lutadora, mais amiga, para o colocar na Universidade. Sempre quis a sua presença na Universidade, lutando por ela como ninguém.