DISPERSOS. 12
A caça à baleia[1]
20 anos atrás, ainda se caçava a baleia no mar de Sesimbra. Para se poder assistir, assinava-se um termo de compromisso:
– Responsabilizo-me pela minha morte.
Isto de uma criatura de Deus se responsabilizar pela própria morte só no mar, onde toda a gente é livre, livre como os longos horizontes e o infinito que há neles.
Eu fui dos que assistiram a uma caçada à baleia. Um barco a motor, do tamanho dum cacilheiro, um canhão à proa, toda a tripulação atenta ao grito que vinha do cesto da gávea lá no alto do mastro:
– Baleia a bombordo!
– Baleia a estibordo!
E o barco mudava de rumo para onde a voz o mandava, um rumo que incidia no vértice dum ângulo de que ele era uma das linhas e a outra o esfumegar constante da baleia. Encontravam-se matematicamente no vértice desse ângulo, barco e baleia.
A tripulação parava de respirar, olhos postos na grande massa escura que aparecia, desaparecia, reaparecia, grande força rítmica como a do próprio mar obedecendo à energia misteriosa que faz as marés. O profeta Jonas comparou a baleia ao abismo. No ventre desse abismo esteve três noites e três dias, tantos como Cristo nos infernos. A baleia é, de facto, a força do abismo em movimento.
Ao meu lado estava um pescador, de agudo perfil hebreu, que, devo dizê-lo, me estava a interessar muito mais do que a baleia. Sentia, não sei porquê, que esse homem, repassado de mar e tempestade, estava ali completamente indiferente ao êxito da caçada.
– Já caçou muitas baleias? Perguntei-lhe.
– A minha mulher, senhor. Gorda como uma baleia, que me engoliu em vida como ao profeta Jonas e me faz andar aqui a arranjar sustento para os filhos.
Aquele homem era um humorista, sério como todos os humoristas, humorista como todos os portugueses que pelo riso se vingam da rotina miserável dos dias. Ao ouvi-lo, nem sequer reparei que a baleia se tinha escapado, antes que o arpão partisse, mergulhando na profundidade das ondas, para não mais aparecer. Era só mar de novo, extenso e interminável, que o homem do cesto da gávea perscrutava a bombordo e a estibordo, de olhar atento e veloz como o de uma ave de rapina…
António Telmo
[1] Título da responsabilidade do editor. A crónica foi escrita entre 1971 e 1972, talvez ainda em Sesimbra, ou já no Redondo, consoante resulta do teor do caderno em que foi encontrada na espólio de António Telmo. Daqui se infere que o relato se reporte a factos ocorridos pelo meado do século XX. Saiu a lume em O Sesimbrense em 1 de Junho de 2013.