DISPERSOS. 10
O batoteiro
Usava monóculo e, como o heterónimo do poeta, chamava-se, que coincidência!, Álvaro de Campos. Aparecera em Borba no verão quente de 197… e, no club que frequentava assiduamente, conjecturavam os esquerdistas que devia tratar-se de algum fascista que fugira para onde ninguém o conhecesse, mas alguns, menos apaixonados, duvidavam que assim fosse porque, então, porque diabo teria escolhido o Alentejo?
Não jogava, mas assistia de pé, longas horas, atrás de um dos jogadores, sem dizer palavra e sorrindo amavelmente para quem olhasse para ele. Várias vezes o tinham convidado, mas recusava o convite, dizendo não conhecer o jogo de poker aberto. Tentaram por meio de perguntas que julgavam hábeis saber alguma coisa sobre o indivíduo. “Gosto muito do Alentejo e dos alentejanos.” “O médico recomendou-me estes ares.” Os argumentos que metam filhos ou doenças convencem toda a gente. Mas a sua presença silenciosa irritava-os. Os mais corajosos lançaram-lhe uma ou outra “indirecta”. Ficava imperturbável.
Jogava ali um barbeiro que fazia dó, quando perdia. Os outros chasqueavam: “Lá se foi o dinheiro de mais dez barbas!”. Não respondia, procurando esconder as mãos que insistiam em tremer, coisa impossível, já se vê, porque as mãos têm que estar sobre a mesa a segurar e a manipular as cartas.
“José Joaquim, lá se foi o dinheiro de mais quatro barbas!”
E repetiam a cada jogada perdida do barbeiro o mesmo estribilho, só com a variante do número calculado pelo valor da importância. Naquela noite, se não fosse a presença do homem do monóculo, o barbeiro, como de costume, teria deixado andar. Como, porém, os chasqueadores procuravam com o olhar a aquiescência do “desconhecido”, o barbeiro teve um súbito acesso de cólera e disparou:
- Ainda vou a casa buscar a navalha para vos fazer a barba a todos.
Foi um troar de gargalhadas. O barbeiro levantou-se e saiu furioso, deixando na cave duas fichas esquecidas. Houve um grande silêncio e todos se voltaram quando o homem do monóculo falou:
- Posso sentar-me e jogar aquelas duas fichas?
Toda a gente se esqueceu do barbeiro, emocionados todos com verem que, finalmente, o homem ia entrar na sua sociedade. Um deles ainda tartamudeou: - Se não traz dinheiro consigo…, mas dois cotovelos sustiveram-lhe a palavra. “Pois não, faça favor.”
Era a vez do barbeiro distribuir as cartas. O desconhecido recolheu-as de sobre a mesa e, antes e começar a misturá-las olhou fixamente para o centro da mesa. Sentia-se o silêncio dos outros. Lentamente, começou a manipulá-las e disse para os lados:
- A mistura dos elementos.
Com a mão esquerda pôs o baralho à frente do jogador a quem cabia “cortar” e falou de novo:
- A troca do que está em cima com o que está em baixo.
Pegou de novo no baralho e, enquanto distribuía as cartas, ouviu-se distintamente como num rito mágico:
- Para Leste, para Sul, para Oeste, para mim. E assim sucessivamente duas vezes. Tirou depois um ás para a mesa.
Não se ouvia uma mosca. O da esquerda abriu. Seguiu a roda das apostas. Metade não foi à jogada, os dos ângulos colaterais. Nova carta: outro ás. Desistiram os outros quatro. O desconhecido recolheu as fichas.
Um deles disse:
- Gostava de saber se tinha os quatro ases.
- Pois não. – E mostrou um oito de oiros e um nove de espadas. Não me digam que nenhum de vocês tinha um ás!
Aqueles homens, habituados ao inusitado, estremeceram na sua sólida auto-confiança. Começaram a sentir-se ridicularizados, mas nada disseram porque não havia um motivo plausível para protestar o que quer que fosse. Todos pensaram no seu íntimo que deviam esperar pelas outras jogadas. Mas, nas outras jogadas, o homem ganhou sempre, por tal modo que, por volta da meia noite, ficou sozinho. O contínuo viu que durante alguns minutos se manteve sentado, olhando tristemente para o pano verde da mesa.
- Não quer rebater as fichas?
- Ah! Sim. Se fizer favor.
Meteu no bolso umas boas dezenas de contos e saiu.
Ninguém o viu mais nem teve qualquer notícia dele. Rosnavam que se tinha abotoado com o dinheiro deles e à custa das duas fichas do barbeiro. Mas este comprou um automóvel e duas cadeiras modernas para a sua barbearia.
António Telmo