DISPERSOS. 07
O Encoberto, de Bruno[1]
O esquema traçado constitui a teia através da qual se desenvolve a trama desta obra-prima da história de Portugal. O leitor, se o mantiver presente no espírito durante a leitura de tão complicado livro, não terá grande dificuldade em orientar-se nos caminhos bruninos, – sinuosos e entrecruzados. Julgamos dar nele a imagem operativa que animou e articulou o pensamento de Bruno. No entanto, o próprio esquema necessita de ser explicado e fundamentado.
Comece-se pelo “sebastianismo” no vértice inferior onde se tocam as duas linhas principais de acção política. O Encoberto é para Sampaio Bruno o Reino de Deus por fim revelado na República dos Homens. Por vicissitude histórica a ideia do encoberto assumiu-se entre nós incorporada no anúncio do regresso de D. Sebastião que viria estender pelo mundo o Reino já fundado de Cristo. Será a ideia católica, tal como a viveu, por exemplo, o Padre António Vieira.
Todavia, parece querer dizer-nos Bruno que o movimento sebastianista, organizado em torno das profecias de Gonçalo Eanes Bandarra, foi uma criação judaica, de fundo messiânico, lançada contra a Inquisição. Chega mesmo a sugerir, nas últimas páginas do livro, que as profecias não se refeririam a D. Sebastião, como mais tarde um D. João de Castro e um Padre António Vieira viriam dizer, mas aludiam à acção de David Reubeni, misterioso judeu alemão, que terá estado em Portugal no reinado de D. João III, era protegido pelo Papa Clemente VII, dizia-se vindo do Oriente, de onde o enviara o Preste João, e tentara converter ao judaísmo o próprio imperador Carlos V através do seu discípulo Salomão Malcho, o português Diogo Pires.
O “sebastianismo” surge-nos assim com um duplo sentido e o não ter em conta que umas vezes está ao serviço da ideia católica de domínio universal e outras vezes da ideia judaica de fraternidade universal, ali posta a esperança num homem, herói ou santo, aqui no acesso de todos os homens. O segundo sentido terá sido animado e movimentado por uma organização secreta, depois conhecida cá fora por Maçonaria, tornada activa em Portugal, segundo o mesmo Bruno, no tempo de D. João III, por intervenção do referido David Reubeni, que já ostentava um avental com os sacros símbolos da Ordem. Quase simultâneo foi o aparecimento da Companhia de Jesus.
Compreende-se, pois, a energia mental que o nosso historiador põe em negar, contra outros notáveis historiadores maçons, a filiação da Ordem nos Templários, servindo-se até do testemunho insuspeito do Conde Joseph de Maistre para mostrar que ela é nos princípios, meios e fins estruturalmente judaica. Este Conde Joseph de Maistre, superfamoso defensor da Igreja Católica, foi iniciado numa loja maçónica martinista e desempenhou na organização importantíssimo papel. Privou com o iluminado Saint-Martin, o promotor da tríade Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Saint-Martin foi o ilustre discípulo de Pascoal Martins, judeu português, que se diz também enviado do Oriente, e fundador, como o nome o diz, do martinismo. Toda a revolução francesa está animada pelo ímpeto contido na famosa tríade.
Dois séculos antes, houve em Valência, na vizinha Espanha, uma série de insurreições populares à volta de sucessivos encubiertos queimados uns após outros pela Inquisição, que durante vários anos alimentaram a chama da revolta. Defendem já as ideias e as emoções que, mais tarde, se tornariam vitoriosas com a Revolução Francesa. O primeiro encubierto é, como David Reubeni, uma misteriosa figura de judeu.
Para Sampaio Bruno, o ódio ao judeu em que comungavam não só os dirigentes da catolicidade mas também o povo ululante durante os autos de fé tem como base um conflito étnico remotíssimo. Sucessivas ondas de camitas terão povoado o território português, provindas de África. Este povo camita – do qual os berberes – terá sido vencido pelos hebreus e ter-se-á espalhado pelo norte de África. O que fundamentalmente o caracteriza é o culto pelos sacrifícios humanos por cremação, culto que revivesce nos autos de fé. O catolicismo dominante na Península Ibérica será, pois, um catolicismo africano, fanático e cruel e, por isso, a Sampaio Bruno afigura-se-lhe perfeitamente ridícula a tese de Oliveira Martins que vê no sebastianismo a expressão da alma idealista e sonhadora de todo um povo. O leitor que tenha a paciência de ler toda a documentação apresentada neste livro descrevendo o comportamento popular durante os autos de fé, em uníssono com as acções dos dirigentes, não deixará de sentir-se pelo menos impressionado de pertencer a semelhante Pátria.
O Encoberto não é, pois, um livro que satisfaça o patriotismo ingénuo de tantos portugueses. Põe-nos perante a realidade da nossa própria natureza, no que ela tem de sinistra e tenebrosa. Sampaio Bruno não é porém um maniqueu, no sentido deturpado da palavra, que é o que vê no maniqueísmo um dualismo do bem e do mal. É um gnóstico, embora do tipo não cristão. O mal é, para ele, um mistério e só a iluminação divina que traz consigo a progressiva reintegração no uno das parcelas divididas poderá finalmente libertar-nos do mal. Daqui o elogio do socialismo como forma de teodiceia. Assim como no alto, pela kabbalah, a Igreja se ligará à Maçonaria (assim pretendia David Reubeni), também em baixo o socialismo abrangerá tanto camitas como semitas no mesmo movimento de aperfeiçoamento moral.
Podemos discordar de Sampaio Bruno, mostrando como o socialismo constitui uma degenerescência da Maçonaria. Aqueles que, de um ponto de vista esotérico ou simplesmente religioso, formam uma imagem minorativa da Maçonaria porque o socialismo ateu ou igualitário dela derive ou nela se fundamente, deveriam pensar que, também para os católicos, os caminhos sinuosos do clero não alteram a perpétua verdade da Igreja fundada por Pedro. Todavia, Sampaio Bruno vê no socialismo democrático subordinado à ideia suprema de República a aplicação ao progresso da humanidade dos princípios sóficos da Maçonaria. Assim como Leonardo Coimbra dizia ser a “mecânica” o socorro de Deus enviado ao Nada, quererá talvez significar Sampaio Bruno que o socialismo constitui o socorro que o todo homogéneo dos seres integrados envia ao nada dos seres decaídos. O fim da Maçonaria no plano político será assim a participação dos membros dispersos e dilacerados da humanidade numa grande e luminosa unidade interior. Nem um só homem poderá ficar fora do processo universal de realização da Bondade. Todos os homens, pela democracia, serão chamados a cooperar activamente na política, assumindo-se cada um como uma parcela luminosa do universo, pois, enquanto emanação superior, conquanto esquecida de si, possui a potencial dignidade de um “sacerdote-rei” maçon, de um arquitecto. Há então que correr o risco que consiste na subversão dos elementos superiores pelos elementos inferiores. Mais do que o risco, há que viver essa subversão sem a cobardia do egoísmo, a não ser que se aceite a ideia pessimista de que para sempre haverá divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os que podem e os que não podem.
Neste ponto, cremos ter dado as indicações necessárias. Deixamos ao leitor o cuidado do melhor. Antes de terminar, poremos ainda um aviso quanto ao estilo de Bruno.
Este livro só pode desvendar-se pela inteligência que a memória dá ou pela memória que a inteligência ilumina. O leitor que, logo nas primeiras páginas, não sinta que está perante um livro secreto ou “encoberto”, como de si mesmo ele diz no título, e que, em consequência, siga por essa estrada das frases e dos períodos desatento ao que já percorreu e desinteressado pelo que vai percorrer ainda ou ficará a meio caminho, enfastiado e confuso, ou chegará ao fim sem nada ter visto de essencial. Tudo nele se liga e tudo está posto a seu tempo e no lugar exacto. É uma fantástica, rigorosa, realista construção mental.
Em geral, quando lemos, arrumamo-nos ao sentido imediato e deixamo-nos conduzir pela cintilação fácil das palavras. Sampaio Bruno não deixa. Logo no período, se não na frase, troca as habituais relações dos termos do discurso, introduz parêntesis, emprega formas estranhas e desusadas de dizer, amontoa citações, demora propositadamente o ponto final, obriga-nos enfim a um esforço de memória que, a ser feito, nos torna mais ágeis de inteligência. Por ali não se vai desatento e adormecido. As sucessivas barreiras exigem um leitor corajoso e que confie na final revelação de um segredo.
António Telmo
[1] Messianismo Português, colóquio realizado na Casa Municipal da Cultura, em Coimbra, no dia 23 de Outubro de 2004, Lisboa, Fundação Lusíada, 2005, pp. 39 a 45.