DISPERSOS. 04

17-12-2013 12:01

Agostinho da Silva e os Titãs

 

Os anos em que vivemos estão marcados por duas manifestações do ser humano aparentemente contraditórias: o titanismo e o infantilismo. Titânicas são as construções em altura das grandes cidades do mundo, os voos de metal cruzando os espaços, a comunicação das palavras e dos números vencendo enormes distâncias, a multidão inumerável dos automóveis, etc.; mas tudo isto assume a forma de brinquedo pelo modo como os telemóveis, a televisão, os computadores, a Internet se tornam os mais comuns e gozosos entretenimentos dos homens, das mulheres e sobretudo das crianças. Eis, depois do futebol, esse gigantesco movimento lúdico que empolga o mundo e que é a própria manifestação do infantilismo. E há disto um sinal evidente: os calções. Há 50 anos, só os rapazes o usavam e a primeira vez que punham calças o sentimento que vivia o adolescente era o de ser recebido como iniciado na sociedade dos homens.

 

Esta combinação do titanismo com o infantilismo envia-nos para a profecia de Daniel interpretando os pés de ferro e barro do ídolo do sonho de Nabucodonosor como o frágil suporte de toda a construção histórica da humanidade.

 

O barro é, segundo o Génesis, a original matéria de onde pelo sopro de Deus se formou o primeiro homem, o homem na sua infância; o ferro é o metal que simbolicamente caracteriza a última manifestação do ciclo, na velhice do mundo.

 

Agostinho da Silva via tudo isto e muito mais. Via-o em íntima claridade, interpretava-o em profundidade. Mas o impressionante é que, perante o espectáculo de um mundo a desfazer-se, em nítida descida para o abismo, continuava a confiar nos homens e nas mulheres que incitava à valentia, ao denodo, à esperança, a crer que só o bem poderia estar no fim e nisso era um aristotélico, porque segundo o sábio grego “a melhor das quatro causas é a final”.

 

É por este traço, excepcional no nosso tempo, que ele, sendo o filósofo de Portugal e do Brasil, é ao mesmo tempo o filósofo do Mundo. Por ele se distingue das duas posições correntemente tomadas perante a fase em que vivemos de evoluir histórico e que são: ou pensar que estamos no culminar do progresso, que atingimos com a tecnologia e com a electrónica o cume do aperfeiçoamento humano; ou considerar que caminhamos para o abismo e que, mais ano menos ano, mais década menos década, estaremos totalmente perdidos.

 

Agostinho diz as duas coisas ao mesmo tempo, mas, para que o paradoxo se possa sustentar, introduz uma terceira: a de tudo depender da decisão do homem, que pode utilizar a tecnologia e a electrónica para ganhar o ócio, que é o pedaço de liberdade que herdámos do Paraíso. O homem, repete ele muitas vezes, não nasceu para trabalhar mas para contemplar o Santo Nome de Deus e, contemplando, trazer a divina energia que por esse modo obtém para tudo quanto faça, sinta ou pense. A filosofia poética do autor de Considerações (lembremo-nos de que a palavra considerações tem no seu seio a palavra sidério) é, por um dos seus mais relevantes aspectos, um Manifesto Contra o Trabalho. Uma vez derrotado, este deixará um vazio imediatamente preenchido pela actividade poética, se o ensino ordenar o espírito da criança para a realização do que mais importa, para a aceitação activa do imprevisível.

 

Agostinho da Silva vê o perigo. Os computadores podem libertar os humanos do trabalho, mas ao mesmo tempo tornar tudo previsível, como já se começa a ver em meteorologia. Ora, sendo o imprevisível manifestação do Espírito Santo, tornar tudo calculável não será como que um esboço do único pecado imperdoável?

 

Ele tinha um nome por assim dizer secreto. Chamava-se também George, mas este nome só era usado entre os mais íntimos. Era o nome próprio, o nome inalienável.

 

George (do grego Gêourgos) é quem trabalha a Terra, é o grande agricultor do mundo humano. Todavia, não nos deixemos enganar. Agostinho da Silva só valorizava uma espécie de trabalho, aquele que é um paradoxo de si mesmo, em que trabalhar tem por fim libertar do trabalho superando-o infinitamente pela criatividade. É o sentido do que diz em entrevista no Jornal de Notícias (17-11-87): “Foram Portugal e Espanha – sobretudo Portugal – a darem ao mundo o conhecimento de si mesmo. Agora lhes conviria e lhes caberia o papel de dar o conhecimento daquilo que é fundamental nesse Mundo. Toda a gente pode ter aquilo a que chamo de “vida poética”, no sentido de criadora, em qualquer dos domínios: artes, ciência, filosofia, mística. Isso é possível e deveria fazer-se”.

 

Hoje, como está à vista e se sofre na pele, lançou-se sobre os humanos uma rede do tempo que os acorrenta ao trabalho, que os escraviza; rede essa que nem espaços entre os fios consente por onde se escape alguém para aquele modo de vida poética. Só em sonho, dormindo, imaginam fazê-lo. Sabemos, porém, que só somos criadores de algo verdadeiro quando estamos lúcidos e bem despertos.    

 

Mais uma vez não nos deixemos enganar confundido ócio com preguiça e desemprego, o ócio que, segundo agostinho, é o que ainda nos ficou do Paraíso. Os acorrentados a um dia inteiro de trabalho, a uma vida inteira, a uma eternidade, sempre com ele preocupados porque é donde lhes vem o dinheiro com que possam alimentar-se e vestir-se a si e aos seus, é inevitável que temam o desemprego que os entregaria de novo à miséria e eis o motivo por que o espírito calculador que comanda hoje a humanidade faz com que haja sempre uma bem estudada margem de desemprego para que todos se sintam ameaçados. Assiste-se então a esta enormidade: são os próprios escravos a fazer a apologia daquilo que os escraviza.

 

Sic transit mundus. Agostinho da Silva vê-o passar como um rio de águas turbulentas que ignore o mar que o vai absorver. Olha-o tranquilo, embora indignado, pois sabe que sem tranquilidade não há verdadeira bondade. Sabe também, na tranquilidade de Gêourgos, que o dragão se deixa dominar por um leve toque da lança, toque tão suave como nos ouvidos da nossa alma obscura a palavra que ilumina.

 

Estas linhas que foram ficando para trás são o débil eco das sucessivas leituras, do imenso convívio com os livros de Agostinho, e com ele próprio, sobretudo durante os anos em que vivi em Brasília, no Centro por ele fundado de Estudos Portugueses. Ali, com ele ao lado, no Centro de Estudos Clássicos dirigido pelo insigne helenista Eudoro de Sousa, não se era escravo do trabalho. Todos tinham o tempo do seu ócio, uns imaginando com Camões ou com Virgílio, outros procurando compreender a história de Portugal e do Brasil pelo culto do Espírito Santo, outros como o Teodoro, modesto funcionário daquele Centro, criando a Casa Cultural de Taguatinga.

 

Era aqui, nos fins de semana, que Agostinho da Silva ensinava aos pobres de espírito, que todos éramos ou pretendíamos ser, o sebastianismo de Portugal e de Canudos ou a fantástica proeza de S. Jorge dominando o Dragão, e explicava o sentido da bandeira do Brasil, não pelo positivismo de Augusto Comte, mas como uma manifestação de Kidr o Verde, animando do ouro da madrugada a Ordem e o Progresso.

 

Num mundo em que o infantilismo anda de mãos dadas com o titanismo, a Ordem confunde-se com o Comando dos Titãs que escravizam ao trabalho, iludindo com jogos e pantominas as inumeráveis gentes que o Progresso põe on-line. Como sempre fazia, Agostinho lançava o paradoxo, ia encontrar liberdade onde se lia ordem e progresso, ligando movimento e contemplação, num rapto metafísico que nos abria as portas do conhecimento no Clube do Teodoro, em Taguantinga, cidade satélite de Brasília. 

 

António Telmo