CORRESPONDÊNCIA. 53
A correspondência de Max Hölzer para António Telmo
Transcrição, apresentação e notas de Risoleta C. Pinto Pedro
A correspondência inédita, escrita em língua francesa, cuja publicação hoje se inicia, ocorre no âmbito de um círculo de estudos ocultistas e da consciência, orientado pelo austríaco Max Hölzer[1], através das suas vindas a Portugal, principalmente a Lisboa, mas também ao Porto e a Borba.
As mais de trinta cartas de Hölzer para António Telmo, entre Maio de 75[2] e Abril de 80[3], são remetidas de Paris na sua quase totalidade (exceptuando uma da Áustria e outra de Lisboa) e reflectem três principais tipos de mensagens: o retorno em relação a estadias anteriores com agradecimento e alegria; a antecipação de próximas vindas, com recomendações sobre logística, quer em relação à própria estadia (onde vai ficar, onde gostaria de pernoitar, por onde tenciona entrar no país), quer em relação aos eventos e sua preparação, como conferências, cursos, encontros, sendo estes de dois tipos: públicos; ou entre um círculo muito reduzido e criteriosamente escolhido. António Telmo é sempre referido como indispensável e prioritário, e a ele acrescenta os nomes de Carlos Silva e Francisco Sottomayor. Afirma, mesmo, no conto “Trabalho de Grupo”, que «durante os três primeiros anos fui, por assim dizer, o único discípulo daquele mestre. Embora nos reuníssemos, de quinze em quinze dias, na casa de Francisco Sottomayor, o meu trabalho era individual». Episodicamente, outros nomes aparecem referidos, mas este é indubitavelmente o círculo interno, que pode eventualmente ser alargado a outros, de modo muito seleccionado e por si indicado. Um terceiro tipo de conteúdo toma a forma de recomendações sobre exercícios espirituais, aquilo que Telmo nomeia, no conto acima referido, «o ensinamento operativo de Georges Ivanovitch Gurdjieff», e ainda comportamentos em relação às leituras ou considerações acerca da evolução do conhecimento e do seu processo. O foco na atenção e na auto-observação é quase uma constante. O conceito de “rappel”, muito presente em Gurdjieff[4] e em seu continuador Ouspensky, cujos princípios de trabalho interno Max Hölzer procura seguir e transmitir nos seus grupos, cursos e conferências, é muitas vezes considerado. Muito claro e directo nas questões práticas, algo nebuloso, por vezes, na temática psicológica e espiritualista, ou por o atraiçoar uma língua que não é a sua, ou intencionalmente, ou ainda devido às dificuldades levantadas pelo tema. Para além da circunstância de ocasionalmente se tratar de um comentário a algo escrito por António Telmo em missiva anterior a que não temos acesso, ficando algo omisso que dificulta a compreensão da resposta.
A última carta é a resposta de Hölzer à decisão de Telmo de deixar o grupo. Resposta inequívoca, breve, seca, arriscaria a acrescentar: deselegante[5] e mal disfarçadamente despeitada. Em franco contraste com todas as anteriores, onde o tom alterna entre o amistoso e mesmo o intensamente amistoso[6], o pragmático, o reflexivo e o didáctico, confundindo-se, por vezes, estes dois últimos, embora o tom didáctico possa raiar o autoritário quando contempla “conselhos” como restringir as leituras de Telmo às recomendadas por ele no âmbito do trabalho, ou “aconselhar”, por exemplo, em alternativa à tradução que Telmo pretende fazer, de Z’ev Ben Shimon Halevi, um outro livro de autor por si escolhido, num apertar de cerco conceptual e espiritual intolerável para um espírito livre como o do nosso filósofo. Por isso, compreende-se a sua afirmação no conto “Trabalho de Grupo”: «Era o maior sacrifício que me era imposto dentro do meu destino de aprendiz de filósofo»; isto, a propósito de «uma circunstância extraordinária» que «fez que me visse obrigado a trabalhar em grupo pela primeira vez na minha vida». Se todos os contos de Telmo apresentam, de uma maneira geral, um compromisso equívoco (possivelmente deliberado) entre realidade e ficção, este é talvez o que mais se cola à realidade, fingindo contar uma história, para, reparafraseando Pessoa, chegar a fingir que é ficção aquilo que deveras foi… acção.
No referido conto, Telmo explica por que razão e de que forma decide abandonar o trabalho com Hölzer. Algumas causas essenciais aí são apresentadas, como a incompatibilidade da tendência para a anulação da personalidade, de raiz orientalista, sob condução e submissão a um mestre, que Hölzer traz consigo, em contraste com o valor mais alto da filosofia portuguesa: a liberdade. Para além de que, apesar de Pessoa formular O Oriente de onde vem tudo, isso perde peso perante a declaração de Álvaro Ribeiro, o qual é, para Telmo, a filosofia portuguesa: Está bem. Mas Portugal é a terra do Ocidente.
Eloquente é a orientação transmitida numa das cartas para a leitura de um texto recomendado, de Ouspensky: «Leiam-no em conjunto, sem demasiada discussão», onde é claro o desprezo pelo espírito crítico, na linha da submissão absoluta aos mestres, atitude antitética à da “escola” de Telmo.
Pode acontecer, ocasionalmente, Hölzer referir as suas próprias circunstâncias do momento, mas “en passant” e sem pormenorizar, ou por razões de tipo funcional, como transmitir o endereço da nova morada (há várias mudanças de casa), ou para explicar por que razão se encontra no estrangeiro, como quando vai receber um prémio literário, sobre o qual não acrescenta informação, a não ser que isso o leva à terra natal, na Áustria, onde os pais estão sepultados, aproveitando para visitar a sepultura. Quanto a estados de alma, muito raros, um se destaca, sobre o desgosto que lhe está a dar Paris, que vê em oposição a Lisboa, sendo esta, para ele, muito mais próxima da natureza.
Do ponto de vista literário, toda a bibliografia que normalmente recomenda se remete ao estudo espiritualista, com excepção de um livro de poesia que envia a Telmo, sem referir, na carta, o autor.
A expectativa que nos tomou antes da leitura das cartas sobre a possibilidade de existência de referências ao surrealismo[7], a que se encontrou muito ligado, como autor, como divulgador, foi quase totalmente fracassada, pois as raras alusões literárias limitam-se ao vago caso acima referido do livro de poesia, ao prémio literário que foi receber em dada ocasião, e pouco mais, para além da profunda impressão que lhe deixara, em 1969, uma declamação de Pascoaes por José Marinho. E a este nível é quase tudo. Mas não podemos igualmente ignorar que Hölzer refere mais do que uma vez, nas cartas, o texto que anda a escrever sobre Pessoa[8], e que pretende publicar. Quase tudo também, porque a um olhar atento não será indiferente o facto de ele citar Jarry, o mais próximo que aqui encontramos da sua simpatia (ou anterior interesse) pelo surrealismo.[9]
Quanto ao uso da língua, apesar de dominar com fluência o francês escrito, é visível, aqui ou ali, sobretudo ao nível da construção sintáctica e das concordâncias, que se trata de alguém de outra nacionalidade. O que é curioso é que em alguns dos casos poderíamos estar perante erros cometidos por um falante do português, o que não é verdade, embora numa das cartas peça a Telmo para lhe escrever em português, porque lhe dá mais prazer.
A expressão por ele usada «ne pensent en» é um exemplo claro do que acabamos de afirmar, pois o «penser à» é para nós o «pensar em», que encontramos nesta sequência.
Igualmente o uso do pretérito imperfeito em vez do perfeito ou do passado simples, como por exemplo: «elle provoquait en moi», no contexto, inequivocamente com o sentido de passado não durativo.
Algumas destas idiossincrasias não transparecem na tradução, outras levantam, justamente, problemas a este nível, pois quem traduz tem de interpretar de acordo com o seu conhecimento da língua, confrontando-o com o uso que dela aqui é feito, e no contexto, o sentido mais coerente com a sequência.
Frases com a ideia incompleta, mistura de tempos verbais e pontuação muitas vezes pouco clara, tornam difícil a interpretação e forçam a alterações na mesma, sob pena de o sentido ser inapreensível. Por vezes não interfere com o sentido, é apenas extravagante e parece ignorar a norma.
Sobretudo nas reflexões sobre temas da espiritualidade, consciência, trabalho interno, há um certo hermetismo que resulta, por um lado, como já referimos, da própria natureza do tema, mas também de questões sintácticas que fazem com que frases não muito claras ou incompletas se liguem a outras, assim criando um fenómeno de ambiguidade nem sempre fácil de desenovelar e coloca alguns problemas em termos de tradução. São raríssimos os erros ou gralhas ortográficas, já as referidas desconexões sintácticas aparecem com alguma frequência, criando uma nebulosidade que se interpõe entre o texto e a interpretação.
É relevante a preocupação com a ênfase de certas palavras, daí a profusão do uso de sublinhados, travessões e aspas, num tempo sem emoticons, mas com generosos sinais gráficos.
Deixando os aspectos da forma e voltando a questões de fundo, terminaremos, à laia de balanço ou conclusão, com as palavras de António Telmo, num texto escrito por volta dos oitenta anos e publicado no I volume das Obras Completas[10] sob o título “O Quarto Inimigo do Guerreiro”:
«O I Ching aconselhou-me a retomar o caminho que em tempos pratiquei sob o impulso de Max Hölzer. Fiz várias tentativas de praticar a meditação. Vi, mais uma vez, que a minha individualidade vocacionada para a arte poética se dissolvia com a prática dessa meditação, em que, como se sabe, temos de deixar toda a imagem, todo o sentimento, todo o pensamento. […] Além disso o Yung, apesar do seu nome que parece chinês, está-me indicando que o caminho de um ocidental não é o do Oriente.»
NOTAS
[1] Vale a pena ler ou reler o conto de António Telmo, “Trabalho de Grupo”, onde sob uma forma ficcionada, narra a história real do seu encontro com Max Hölzer, através da intermediação de José Marinho, sabendo este do seu interesse pelas Ciências Ocultas.
[2] Segundo testemunho de António Reis Marques via Pedro Martins, em 1975 Holzer «já havia algumas décadas que vinha, a espaços, passar temporadas a Portugal, ficando instalado no Hotel Borges, ao Chiado. E tinha um número considerável de relações pessoais significativas entre nós. O Orlando [Orlando Vitorino, irmão mais velho de Telmo], por exemplo, já conheceria o Hölzer de longa data, muito antes de o Marinho o apresentar ao Telmo».
[3] Contudo, como refere numa das cartas, há visitas anteriores: «lors de mon deuxième séjour au Portugal en 1969». Este ano terá sido o da sua segunda vinda, o que pressupõe uma anterior, de desconhecida data.
[4] Gurdjieff, “G.” para os seus seguidores. Assim é também “nomeado” nestas cartas. Filósofo e mestre espiritual arménio, nascido no início da segunda metade do século XIX. Criou um método original de desenvolvimento da consciência que inclui a dança e a música, e o seu livro mais conhecido tem por título Encontro com Homens Notáveis, posto em filme por Peter Brook, nos anos 80. O realizador é, aliás, referido numa das cartas.
[5] Pela forma crua como lhe pede a urgente devolução de material emprestado.
[6] «Lembre-se que eu penso em si todos os dias». Carta de 16 de Maio de 75.
[7] Max Hölzer (1915-1984), poeta, editor e tradutor, editou publicações surrealistas com Edgar Jené, entre 1950 e 1952, com traduções de Breton, Péret, Lautréamont e outros. Na década de 1950, Hölzer foi um dos primeiros poetas de língua alemã na área do surrealismo, tendo contribuído para a criação de uma estrutura de elite. Um dos seus livros, Der Doppelgänger, foi ilustrado por Jean Cocteau. Posteriormente, voltou-se para o estudo de Kabbalah, que ganhou grande impacto na sua produção poética. A sua obra lírica está publicada pela Rimbaud Verlag. No livro Contemporary Austrian Poetry in Translation: An Anthology (English and German Edition) Hardcover – September 1, 1986, German Edition by Beth Bjorklund , foi possível identificar alguns poemas seus: “And The Coming Of The Poem”; “That It Consumes”; “He Let The House Be”; “I Accompanied The Castilian”; “In The Trocadero”; “Mysterious Geometry”; “Sete” e “The Summer's Cold”. Recomendado para consulta: https://www.encyclopedia.com/arts/educational-magazines/holzer-max-1915-1984.
[8] Talvez pela razão que Telmo refere no já citado conto “Trabalho de Grupo”, a propósito de Pessoa: «O entusiasmo das novas gerações com a obra e a personalidade de Fernando Pessoa é, em grande parte, devido ao fascínio que sobre essas gerações exerce o esoterismo de sinal orientalista». O que é coerente com as características orientalistas da obra de Gurdjieff, que inspira o trabalho de Hölzer. Este texto, “Dans le tombeau de Christian Rosencreutz – Essai d’Interprétation du poème de Fernando Pessoa selon la Kabbale”, foi publicado no número 8-9 da revista Exil, de Dominique de Roux, juntamente com um ensaio, também de inspiração pessoana, de André Coyné, e de uma tradução de O Banqueiro Anarquista, de Pessoa.
[9] «Como o tempo passa (está na sua natureza, diria Alfred Jarry)». Carta de 16 de Maio de 1975.
[10] A Terra Prometida – Maçonaria, Kabbalah, Martinismo e Quinto Império, Zéfiro, Sintra, 2014.