CORRESPONDÊNCIA. 49
Luís Amaro (a partir de foto de 1950), Luís Manuel Gaspar, tinta-da-china e acrílico sobre papel, 2006 (Colecção Dulce Palma Rosa)
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CARTAS INÉDITAS
DE LUÍS AMARO PARA ANTÓNIO TELMO
[transcrição & comentário de Pedro Martins & A. Cândido Franco]
Nado e criado em Aljustrel, no Baixo Alentejo, Luís Amaro [1923-2018] fez a sua formação de autodidacta com o seareiro Deodato Barreto e com escritores ligados ao sindicalismo libertário da primeira República – Manuel Ribeiro, Ferreira de Castro, Julião Quintinha e outros. Estreou-se aos 12 anos com uma crónica no jornal Ala Esquerda, do Centro Democrático de Beja, e com a mesma idade entrava como redactor do jornal Diário do Alentejo, fundado pouco antes em Beja.
Aos 16 anos era redactor do jornal Brados do Alentejo em Estremoz e pouco depois, em 1941, por intermédio de Agostinho da Silva, muito relacionado no meio livreiro, veio para Lisboa como caixeiro da livraria da Editora Portugália, onde depressa ascendeu a revisor linguístico e editor literário.
Conviveu então com muitos dos mais importantes escritores portugueses, vindo ele próprio a publicar nessa época o seu único livro Dádiva (1949) – um volume de poemas que teve depois reedições sucessivas (1975; 2006; 2011) com título refeito, Diário íntimo, e sempre com novos acrescentos. Com jovens poetas da sua idade – António Luís Moita, António Ramos Rosa, José Terra e Raul de Carvalho – fundou a revista Árvore [1951-1953], uma das mais marcantes da poesia portuguesa da segunda metade do séc. XX.
Nas instalações da Portugália Editora, por certo ainda na primeira metade do século, conheceu Orlando Vitorino [1922-2003], já então conviva das tertúlias do grupo da Filosofia Portuguesa. Foi a propósito do falecimento deste pensador, ocorrido a 14 de Dezembro de 2003, que escreveu pela primeira vez – tudo leva a crer que fosse pela primeira vez – ao seu irmão António Telmo, que de resto conhecia quase da mesma época. É documento comovente, fraterno e solidário, que mostra toda a dádiva que existia na alma deste homem generoso e sensível, que punha um gosto raro no convívio com os seus semelhantes.
Mas essa breve missiva dá ainda a ver a agilidade da sua verve epistolar, o seu desembaraço verbal e a sua atmosfera comunicativa, ele que não tinha qualquer formação escolar – possuía como única habilitação académica a instrução primária – e que começou a prover ao seu sustento fora de casa aos 12 anos, verdadeira figura dickensiana a quem roubaram cedo a infância e a inocência.
As duas cartas seguintes, de 2006 e 2009, já não têm por motivo o convívio com Orlando Vitorino mas com o próprio destinatário. Estudante da Faculdade de Letras de Lisboa, que então ficava numa fralda do Bairro Alto, na Rua da Academia das Ciências, Telmo frequentava os pequenos e populares restaurantes do Bairro Alto, onde encontrou e conviveu com Luís Amaro, também ele vizinho ao mesmo bairro, pois a livraria Portugália ficava perto do Chiado, na Rua do Carmo, e as pensões em que residia, ele que não tinha família em Lisboa, na mesma área. Se atendermos à carta de 23-7-2003, em que se diz que os únicos convivas do jovem livreiro eram Romeu Correia, António Telmo e o irmão deste Rui Vitorino, o convívio entre os dois terá sido intenso e afectuoso. Que Telmo guardou boa memória do seu comensal da época, testemunho-o eu, que lho ouvi, por certo em momento que coincidiu com a leitura duma destas cartas – talvez a segunda.
Azinhal Abelho [1911-1979], que Luís Amaro deve ter conhecido no seu período de Estremoz, foi outra das pontes entre ambos, e por certo não a menor, já que Abelho era um dos que sentava nas tertúlias da Filosofia Portuguesa ao mesmo tempo que era autor dum premiado livro que muito deve ter impressionado o Luís Amaro que vinha de Aljustrel, Confissões dum rapaz provinciano (1936). Mais tarde, Estremoz, para onde Telmo se mudou no início da década de 80 e onde Amaro residira e trabalhara no curso de dois longos anos, foi o motivo central da terceira e última missiva que aqui se dá a conhecer e que vale uma página de memórias, escrita depois de quase 70 anos de ausência.
Já no final da década de 60 mudou-se Luís Amaro para os serviços editoriais da Fundação Calouste Gulbenkian, onde secretariou e co-dirigiu até tardia aposentação a revista Colóquio/Letras, que muito deve ao seu saber e ao seu sentido de convívio. Aí voltou a reencontrar Orlando Vitorino, funcionário da mesma Fundação, e com quem se cruzava nas instalações da instituição ou nos restaurantes próximos, entre a Avenida de Berna e a Avenida António Augusto de Aguiar, onde ambos almoçavam, embora em grupos distintos – Luís Amaro com jovens colaboradores da revista Colóquio/Letras e Orlando com os do seu círculo, Francisco Morais Sarmento, José Luís Ferreira e outros.
Já no caso de António Telmo é provável que após o convívio que com ele teve na Lisboa do meado do século XX nunca mais o tenha visto, já que depois da sua vinda para a livraria Portugália, Luís Amaro pouco mais regressou aos lugares do seu Alentejo natal e não frequentou em absoluto Sesimbra, onde Telmo chegou a viver e a trabalhar depois do seu regresso do Brasil em 1968.
Originário duma terra mineira com forte implantação da organização operária, nascido no seio de família muito modesta – o pai era correeiro –, Luís Amaro manifestou desde cedo simpatia pela generosidade dos ideais libertários, de orientação cooperativista, socialista e comunista, embora sem qualquer militância a assinalar. Fez questão de doar depois da morte ao jornal A Batalha, hoje centenário, parte do seu mobiliário pessoal.
Carta I
Monte Real, 25 Dez. 2003
Meu Caro António Telmo:
O destino, essa entidade que nenhum sábio pode compreender, faz que seja no dia de Natal que lhe envie o meu comovido abraço pela morte de seu irmão Orlando. Foi para mim de todo inesperada, pois não o sabia doente. E relembro o simpático jovem, pouco mais velho que eu, que num dia longínquo – há mais de meio século! – conheci na Portugália Editora ao serviço de uns senhores alemães que organizavam o Quem é Quem (pelo vernáculo Álvaro Pinto, da Ocidente, sugerido para Quem é Alguém). E desde então, sempre que nos cruzávamos, Orlando Vitorino me distinguia com um sorriso, e nunca, mas nunca, a peculiar ironia que o caracterizava me feriu… – coisa não vulgar nos intelectuais, e tantos foram, que conheci na vida.
Enfim – todos temos um fim, que nos espera! –, venho dar-lhe um sentido abraço e dizer-lhe da minha mágoa, sejam quais foram as diferenças entre nós todos.
Aceite V. também a velha estima que lhe dedica, junta com a admiração intelectual dum inculto,
o seu amigo Luís Amaro.